Como a fermentação controlada pode melhorar o sabor e a qualidade do café?
Na indústria de café especial, não é exagero dizer que os cafés processados experimentalmente se tornaram cada vez mais populares nos últimos anos. Cada vez mais produtores utilizam métodos novos e inovadores de processamento e a fermentação controlada exerce um papel significativo em muitos deles.
No entanto, como com qualquer técnica de processamento de café emergente, os agricultores precisam tomar muito cuidado ao manipular a fermentação para processar o café. Ao controlar uma série de variáveis, os produtores podem criar sabores maravilhosos em seus cafés e aumentar as pontuações finais da xícara.
Mas como podem os agricultores fazer isso de uma forma que equilibre sucesso e rentabilidade? Para descobrir, conversei com quatro especialistas do setor para entender mais sobre o processo. Continue lendo para obter mais informações sobre fermentação, sabor e a qualidade do café.
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O que é a fermentação controlada?
Apesar de seu recente crescimento na popularidade no setor de café especial, a fermentação faz parte da produção de café há muito tempo.
Todo o café sofre algum nível de fermentação, já que os açúcares e ácidos presentes na mucilagem dos frutos começam a se desnaturar logo após a colheita. E isso é, em grande parte, a origem da doçura no café.
No caso do café lavado, os agricultores mergulham as cerejas despolpadas em água por várias horas para remover qualquer polpa restante e toda a mucilagem. Isso geralmente resulta num perfil de sabor mais limpo e brilhante, com a acidez mais destacada.
No entanto, nos últimos anos, tem havido um foco crescente no controle da fermentação durante o processamento, bem como no uso de micro-organismos selecionados para acelerar a fermentação. Esses métodos podem ter uma série de benefícios, que incluem melhorar os sabores e preservá-los por mais tempo.
Quando falamos de fermentação, no entanto, devemos diferenciar entre as duas principais maneiras pelas quais ela ocorre. Trata-se de fermentação aeróbica e anaeróbica, que ocorrem com ou sem a presença de oxigênio respectivamente.
Diferenças entre fermentação aeróbica e anaeróbica
Ao incluir leveduras selecionadas no processamento do café, a presença ou ausência de oxigênio desencadeia várias reações. Entre elas, o crescimento ou a quebra de um número de substratos que produzem compostos químicos voláteis como ácidos e álcool.
Em geral, a fermentação anaeróbica é mais a comum e nela as cerejas podem ser mantidas em tanques abertos ou fechados. No caso dos tanques abertos, apenas a superfície e exposta ao oxigênio e a fermentação anaeróbica ocorre nas camadas mais abaixo. Em ambos os casos, os açúcares se decompõem por um longo tempo, criando sabores mais doces e complexos.
Em teoria, quanto mais longa a fermentação mais intensos serão os sabores no resultantes. Isso ocorre porque há maior transferência dos compostos que surgem ao longo do processo para os grãos, que neles ficam imersos por períodos mais longos. No entanto, é importante que haja controle neste processo para proporcionar somente a transferência de sabores desejáveis.
Uma das leveduras mais comuns na indústria cafeeira é a Saccharomyces Cerevisiae, a mesma que se usa na produção de pão, vinho e cerveja. Nos últimos anos, muitos cafeicultores passaram a também usar diferentes microrganismos, com o objetivo de gerar perfis sensoriais diferentes.
Camille Duez, especialista em Suporte Técnico Global de Fermentação de Café e Cacau da Lalcafé, diz que a empresa onde atua produz leveduras conhecidas por resultar em perfis de sabor desejáveis no café. “Muitos dos sabores que você percebe no café fermentado têm ligação direta com a cepa de levedura usada no processo”, explica ela.
Como a adição de levedura afeta o sabor e a qualidade do café?
Embora se diga que a fermentação pode melhorar a qualidade e o sabor do café, os produtores precisam entender mais sobre como o processo funciona para realizá-lo com sucesso.
“Durante a fermentação, a quebra de açúcares e ácidos pela levedura produz compostos aromáticos e voláteis que são absorvidos pelos grãos de café”, afirma o Dr. Renaud Boulanger, coordenador do departamento de Qualidade Sensorial de uma unidade do CIRAD, um instituto francês de pesquisa agronômica.
Ele explica que há duas maneiras de isso acontecer. “Uma delas é a transferência passiva, onde os compostos aromáticos passam da área mais concentrada para a menos concentrada. A outra é a transferência ativa, em que proteínas específicas presentes no café permitem a ele absorver esses compostos”.
Mas entender quais compostos aromáticos são transferidos da levedura para os grãos de café verde também é igualmente importante.
Entendendo o papel dos compostos da fermentação controlada na formação dos sabores
Em um estudo de 2020 intitulado Transfer kinetics of labelelled aroma compounds from liquid media into coffee beans during simulated wet processing conditions, a transferência de três compostos de levedura para café verde foi medida.
O estudo analisou quatro amostras diferentes de café, todas com diferentes quantidades de polpa, incluindo cerejas despolpadas sem mucilagem e pergaminho, bem como cerejas despolpadas com apenas pergaminho.
Os três compostos medidos no estudo foram butanal, 2-feniletanol e acetato de isoamila. “Escolhemos esses compostos porque muitas vezes resultam em sabores mais herbáceos, florais e frutados no café”, diz Renaud.
Especificamente, o butanal é responsável pelos sabores de maçã, chocolate e pão no café, enquanto a presença de 2-feniletanol cria mais notas florais. O acetato de isoamila, por sua vez, pode produzir notas de sabor mais tropicais, como a banana.
O estudo descobriu que, dos três compostos, a transferência de 2-feniletanol foi de longe a mais alta em todos os níveis de polpa. No entanto, a transferência de todos os compostos produzidos para o café verde é possível, embora em diferentes taxas e concentrações.
Como os produtores podem controlar a transferência de sabor?
Em essência, o estudo de 2020 indica que o uso de diferentes leveduras durante a fermentação pode exacerbar e intensificar diferentes sabores no café. Isso significa que os produtores podem selecionar diferentes leveduras, dependendo do perfil sensorial que desejam criar para um café específico.
A Lalcafé produz seis diferentes cepas de levedura Lalcafé, que têm diferentes propriedades fermentativas que, por sua vez, aumentam uma variedade de compostos de sabor no café. Em última análise, isso significa que os agricultores podem criar uma gama mais diversificada de perfis de sabor.
Jean Faleiros, proprietário da Fazenda El Dorado, na Alta Mogiana, diz como seleciona certas cepas para obter sabores específicos: “para ter sabor mais frutado, com notas de frutas vermelhas, uso a cepa Lalcafé Intenso. Caso eu queura um perfil mais exótico, uso a Lalcafé Oro”.
“Para um café mais limpo e brilhante, uso a cepa de levedura Lalcafé BSC”, acrescenta, explicando que esta cepa Lalcafé ajuda a quebrar a mucilagem em cerejas de café mais rapidamente.
No que diz respeito à melhoria da qualidade do café, as bactérias lácticas estão se tornando mais comumente usadas pelos produtores para resultar em cafés mais limpos e mais brilhantes, às vezes usados junto com leveduras.
“Ao usar levedura, o corpo, os sabores, a doçura e a complexidade de um café podem aumentar”, explica Camille. “Quando você também adiciona bactérias lácticas, como o produto Lalcafé Bactifresh da Lallemand, você também pode aumentar o brilho e a clareza de um café.”
Jean me diz: “Na minha experiência, a fermentação controlada usando leveduras ajudou a melhorar a qualidade do meu café, bem como a criar perfis de sabor que antes eram impossíveis de produzir sem o uso de inoculação.”
A relação entre o perfil de sabor desejado e a cepa de leveduras utilizada na fermentação controlada
Em última análise, o controle da transferência de sabor durante a fermentação se resume a quais tipos de sabores o agricultor está procurando produzir em um café.
Isso é benéfico em especial para os produtores, pois eles podem criar experiências sensoriais mais exclusivas para uma variedade de mercados diferentes – ajudando a diferenciar seus produtos e potencialmente significando que eles podem receber um preço mais alto por libra para cada lote.
“Eu sei qual perfil de sabor cada um dos meus clientes prefere”, diz Jean. “Cada mercado tem suas próprias preferências, e usar levedura me ajuda a criar perfis de sabor mais específicos e repetíveis.”
No entanto, é importante notar que muitas outras variáveis também influenciarão o sabor e a qualidade do café – como a variedade de café, a altitude e o teor de nutrientes do solo, por exemplo. Isso significa que os produtores também precisam ter esses fatores em mente ao realizar a fermentação.
Além disso, como as leveduras são microrganismos vivos, os produtores precisam estar atentos ao usá-las.
“As leveduras são microrganismos unicelulares vivos. Isso significa que não é fácil controlar tudo durante o processo de fermentação”, diz Camille.
“Há também uma série de outros fatores que afetam o perfil final da xícara, incluindo terroir, condições climáticas, maturação da cereja e a qualidade da água usada para cultivar e processar o café”, acrescenta.
Outras Considerações
Além de influenciar a qualidade e o sabor do café, os produtores também precisam levar em consideração uma série de outros fatores ao usar leveduras durante a fermentação.
“Ao realizar a fermentação anaeróbica, por exemplo, precisamos controlar a temperatura, a pressão, o pH e várias outras variáveis”, diz Jean.
Além disso, muitos produtores também se concentram no tempo total de fermentação. Em teoria, quanto maior o tempo de fermentação, mais compostos aromáticos e voláteis serão absorvidos pelo café verde.
Na cinética de transferência de compostos de aroma rotulados do meio líquido para os grãos de café durante o estudo de condições de processamento úmido simulado, a concentração do composto 2-feniletanol aumentou durante a fermentação ao usar as cepas de levedura Oro, Cima e Intenso de Lalcafé.
No entanto, a concentração do acetato de isoamila atingiu o pico às 24 horas e depois começou a diminuir constantemente. Isso significa que significa que o controle do tempo total de fermentação tem um efeito significativo no sabor.
Processos que ocorrem paralelamente à fermentação controlada
Outros processos também ocorrem durante a fermentação, como a germinação. Isso resulta na degradação de certos compostos aromatizantes, ou mesmo uma transferência reversa deles. Tem que haver um equilíbrio e é por isso que a duração da fermentação é tão importante.
Além do tempo de fermentação, a quantidade de polpa retida nas cerejas de café também é importante considerar.
Os resultados do estudo também descobriram que o café verde contendo pergaminho absorveu menos compostos aromáticos criados pela levedura. Isso ocorre porque o pergaminho pode atuar como um filtro molecular, o que significa que os produtores podem precisar levar isso em consideração ao fermentar seu café.
Com exceção do processamento de casca úmida, o pergaminho é mantido nos grãos de café à medida que são processados. A remoção do pergaminho pode revelar uma série de novos perfis de sabor – mas os produtores devem estar cientes de que isso também pode afetar o processo de torrefação.
A torra de cafés fermentados
Enquanto os produtores certamente precisam entender como a fermentação afeta a qualidade e o sabor do café, os torrefadores também precisam desse conhecimento para que possam otimizar seus perfis de torrefação.
Pedro e João Foster são os co-proprietários da Fuzz Cafés no Rio de Janeiro. Eles compraram café de Jean por algum tempo.
“Há cerca de três anos que torramos o café ‘abacaxi’ ”, diz Pedro. João conta como o perfil de sabor do café foi desenvolvido ao longo dos anos. “No primeiro ano de colheita, identificamos abacaxi e sabores semelhantes à pimenta-do-reino. No segundo ano, havia mais notas de limão e o café marcou 90 pontos”.
“Pode ser difícil manter um perfil de sabor tão consistente, mas mostra o quão útil pode ser prever perfis de sabor”, acrescenta. No entanto, certos fatores precisam ser levados em consideração ao torrar cafés fermentados.
“Os tradicionais cafés verdes fermentados brasileiros permanecem frescos por até quatro meses, e os sabores mais delicados se deterioram mais rapidamente”, diz João. “Mais recentemente torramos um robusta, que havia sido fermentado com a cepa de levedura Cima de Lalcafé, 18 meses após a colheita e ainda estava brilhante e com sabor limpo.”
Pedro oferece alguns conselhos ao torrar cafés inoculados com levedura. “Muitas vezes torramos com um fluxo de ar mais alto, por isso é mais semelhante à torrefação por convecção”, explica ele. “Isso pode ajudar a destacar os sabores frutados e florais mais sutis.”
Considerações finais sobre a fermentação controlada
Não há como negar a crescente popularidade do café processado experimentalmente entre torrefadores e baristas no setor de café especial, e é provável que a demanda continue aumentando.
Para os agricultores que procuram produzir esses cafés, investir nos equipamentos e recursos certos de antemão é essencial – assim como estar preparado para fazer experimentos aos poucos e encontrar o caminho para o esse processamento em uma escala maior.
E embora o processamento experimental possa não ser viável para alguns produtores, está claro que a fermentação controlada pode ter uma série de benefícios quando é alavancada de forma eficaz.
Gostou? Em seguida, leia nosso artigo sobre torrefação de café e métodos de processamento experimental.
PDG Brasil
Traduzido por Daniela Melfi
Observação: a Lalcafé é patrocinadora do Perfect Daily Grind.
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