A relação do pós-colheita com o aroma do café
Desde a semente até a xícara, o café passa pelas mãos do agricultor que faz o plantio, cultiva, colhe as cerejas e as secam, chegam aos torrefadores, depois às mãos daqueles que moem e preparam a bebida e, finalmente, às mãos de quem a consome. O que foi descrito é o caminho muito simplificado da cadeia produtiva do café.
Pode passar a (falsa) impressão de que o café passa por pessoas e processos aparentemente não relacionados. Mas fazem parte de uma complexa cadeia produtiva inter-relacionada que oferece uma das bebidas mais consumidas e populares do mundo.
A qualidade do café é determinada por diversos fatores que incluem a variedade genética do café, clima, solo, origem geográfica, práticas de cultivo, processamentos de pós-colheita, torra e método de preparo.
O pós-colheita são as etapas que ocorrem depois que os frutos são colhidos, das quais se obtém suas sementes, o café verde. Essas etapas podem modificar ou potencializar a qualidade intrínseca do grão e, por exemplo, destacar características como acidez ou corpo sem necessariamente alterar outras características.
Para saber mais como os procedimentos pós-colheita afetam a qualidade do café, especialmente a formação de aroma, o PDG Brasil conversou com profissionais que atuam especificamente nessa área.
Você também pode gostar de ler Qual é a relação das leveduras com a fermentação?
O pós-colheita
O professor Flávio Borém, pesquisador do Departamento de Engenharia Agrícola da Universidade Federal de Lavras, faz uma distinção entre pós-colheita e processamento do café. O primeiro se refere ao conjunto de operações que ocorrem entre a colheita e a industrialização do café. O segundo é o conjunto de procedimentos que ocorrem entre a recepção do café na unidade de processamento e que antecedem a etapa de secagem.
A planta do café produz os frutos, conhecidos como cerejas, que têm uma série de camadas que envolvem as sementes, como a polpa, mucilagem e película.
Apesar de a planta ser a responsável pela formação do café, os procedimentos de pós-colheita não podem ser ignorados quando se fala em qualidade.
Os procedimentos mais comuns de pós-colheita são lavado, natural, honey e wet hulling. Todos eles com o objetivo final de se obter o grão verde e potencializar a secagem, e indiretamente obter características distintas, até um conteúdo de umidade que impeça o desenvolvimento de microrganismos.
O efeito da fermentação
A remoção de mucilagem do café por fermentação pode ocorrer por duas vias: submersa ou sem adição de água, que impactam diretamente a formação de sabor e aroma.
Por exemplo, a fermentação submersa ressalta atributos de acidez e aroma, e reduz a adstringência. Já o honey é um processamento sem adição de água em que a mucilagem é parcialmente removida (em alguns casos nem ocorre essa remoção) e que permite uma fermentação controlada durante a secagem, que resulta em sabores mais adocicados.
Os dois fatores de estresse dominantes (mas não exclusivos) no processamento do café são hipóxia (ausência de oxigênio) e o estresse hídrico (falta de água). Durante a fermentação úmida, que ocorre de modo submerso, o grão é submetido aos dois tipos de estresse, enquanto na “fermentação seca”, os grãos sofrem o estresse hídrico.
O professor Borém chama a atenção para uma questão relevante, ele afirma que a qualidade da matéria-prima, ou seja, a matriz química da semente e da mucilagem do café antes de iniciar a fermentação é pouco ou raramente considerada nos trabalhos envolvendo processos fermentativos ou que usam diferentes microrganismos. No entanto, é um dos fatores mais preponderantes na formação do sabor e aroma do café torrado.
Porém, quando falamos dos efeitos do pós-colheita na qualidade e diferenciação de cafés, principalmente fermentação, não estamos nos restringindo apenas aos compostos produzidos pelos microrganismos fora do grão, mas também às mudanças fundamentais que o pós-colheita provoca no próprio metabolismo do grão.
A atividade microbiana
Durante o pós-colheita, dois fenômenos principais modulam a composição do café: atividades microbianas no ambiente de processamento e o metabolismo interno das sementes dos grãos de café.
Com o crescimento e o desenvolvimento microbiológico natural, ocorre o consumo contínuo de nutrientes pelos microrganismos e o acúmulo dos produtos formados que se difundem para o interior do grão e impactam a qualidade do café. Segundo o pesquisador Lucas Louzada Pereira, do Instituto Federal do Espírito Santo, em ambientes de baixa concentração de oxigênio, o metabolismo será fermentativo, ou seja, os microorganismos presentes devem se encarregar da fermentação, consumindo os compostos orgânicos presentes, para metabolizar novos compostos, como a conversão do dissacarídeo em álcoois de cadeia curta pela ação de leveduras, ou produção de ácidos através das bactérias do ácido lático
Esse efeito microbiano advém da atividade de enzimas produzidas pelos próprios microrganismos, que degradam os componentes do café. A hidrólise da pectina, por exemplo, leva a formação de açúcares simples que, por sua vez, servem de substrato para o crescimento de outros microrganismos. É um efeito simbiótico.
A produção de ésteres como etilacetato e butilacetato, que contribuem para a formação de notas sensoriais diferentes como de limão siciliano, caramelo, nozes e damasco, vem da atividade microbiana nos arredores do grão, especificamente do metabolismo do ácido lático de bactérias.
Por isso é importante a seleção criteriosa dos microrganismos presentes na fermentação para direcionar a formação de aromas especiais. Por exemplo, a formação de aldeídos durante a remoção da mucilagem é muito importante na composição do aroma de café ao servir como precursores de álcoois e ésteres. Louzada destaca que é difícil exercer um controle exato do processo, porém, é possível observar a predominância de determinados grupos microbianos em função de suas condicionantes edafoclimáticas.
Microrganismos atuando
Sobre a diferença de acidez e aroma em cafés processados por via úmida e seca, o professor Dão Pedro Neto, professor do Instituto Federal do Paraná, faz um comentário interessante. “A acidez e o aroma do café podem ter um fator que não esteja associado diretamente com o processamento, como variedade, altitude, condições edafoclimáticas. Porém, em cafés produzidos nas mesmas condições e submetidos a processamentos diferentes – via seca e via úmida –, a diferença de acidez e aroma está relacionada com uma coisa: mais microrganismos atuando. A via seca mantém o fruto com todos os seus constituintes, expondo eles a condições com baixa umidade e barreiras físicas que impedem que eles acessem o açúcar da polpa e se desenvolvam”, explica.
“Quando se realiza a fermentação do café cereja descascado, os açúcares da polpa são expostos e os microrganismos podem se desenvolver. No caso, as bactérias láticas produzem o ácido lático, que consegue migrar para dentro do grão e atribuir uma acidez lática à bebida e aumentar o corpo. As leveduras, por sua vez, produzem diversos compostos voláteis que também se difundem e se tornam precursores importantes de notas sensoriais para a bebida final.”
O metabolismo do grão
Assim como qualquer outro organismo vivo, o grão de café tem um metabolismo ativo durante todo o processamento, isso é, o grão continua a se desenvolver e a responder aos fatores externos. Portanto altera seu metabolismo de acordo com as condições do ambiente.
Diferenças no sabor e no aroma são observadas entre os dois principais métodos pós-colheita: natural e cereja descascado, pelo tempo necessário para a secagem dos grãos.
Dão Neto comenta que no processamento úmido, o fruto sofre a remoção da casca (exocarpo), desencadeando sinais metabólicos para a semente indicando que está na hora de ela germinar. Dessa forma o grão (endocarpo) começa a consumir os açúcares presentes e quebra de proteínas e acúmulo de uma gama de aminoácidos livres.
E continua: “o fruto processado pela via seca, por sua vez, continua com a casca (exocarpo), não iniciando o processo de germinação e preservando os açúcares no grão (endocarpo)”.
Os processos por via úmida e via seca
O café verde que se obtém com o pós-colheita contém todos os componentes ou precursores que irão se transformar em compostos de sabor e aroma durante a torra, portanto a qualidade desses precursores está diretamente associada à qualidade da bebida.
A principal diferença na concentração de alguns compostos presentes nos cafés processados por via seca e úmida está associada principalmente ao metabolismo dos carboidratos e proteínas.
Carboidratos simples (arabinose, frutose, glicose, sacarose, rafinose e estaquiose) contribuem muito na formação de ácidos e compostos de aroma durante a torra dos grãos. Já os polissacarídeos (celulose e hemicelulose) são importantes na retenção dos aromas formados na torrefação.
Devido à germinação do grão, a glicose e a frutose estão presentes em menores concentrações em cafés de via úmida, associada ao metabolismo desses carboidratos.
Maiores concentrações dos aminoácidos aspartame, glutamato e alanina são resultados da hidrólise de proteínas no cereja descascado.
De acordo com Dão, o longo período de exposição ao sol do café natural provoca um estresse no grão. Para tentar sobreviver, o fruto converte os seus aminoácidos livres em ácido gama-aminobutírico, acarretando em uma diminuição dos precursores disponíveis na torrefação e, em geral, reduzindo a complexidade sensorial da bebida final.
Em termos de aroma, o café verde tem uma composição muito pequena comparado com o café torrado. Enquanto são descritos mais de 1.000 compostos de aroma no torrado, no café verde apenas cerca de 200 aromas são descritos. Inclusive, compostos heterocíclicos, que são muito importantes para o aroma de torrado, não são detectados no café verde.
A complexidade de aroma
Todos os cuidados e escolhas nos processamentos de pós-colheita tem como objetivo a preservação dos precursores que foram produzidos ainda na planta. Tudo isso para que sejam transformados nos compostos de interesse durante a torra dos cafés.
O professor Borém destaca que o método de processamento pode potencializar o aroma desde que o produtor entenda que a complexidade dos produtos depende de várias etapas dentro de um único método de processamento e sua dependência de vários fatores externos, como temperatura, variedade de café e equipamentos de processamento.
E acrescenta: “para cada talhão e para cada variedade existe o método de processamento que irá potencializar o aroma do café, dependendo também do método de secagem usado”.
Alcaloides, proteínas, açúcares, ácidos orgânicos etc., encontrados em altas concentrações no café verde, sofrem transformações complexas durante a torra que dão origem a importantes compostos de sabor e aroma.
No entanto, mesmo que a escolha do método de processamento pós-colheita seja principalmente econômica, os consumidores de hoje estão interessados em descobrir novos sabores e aromas. Em termos de bebidas de café, já não se contentam com cafés de origens exóticas, nem com as variedades e processos vegetais tradicionais. Em vez disso, eles querem experimentar, personalizar sua escolha e personalizar suas bebidas.
Créditos: Sonia Fernandes (cafés divididos terreiros suspensos); Rehagro (frutos maduros fermentando); Angela Pham (café secando em terreiro suspenso); Ravi Patel (bolhas); Christian Joudrey (mudas de café); Rodrigo Flores (frutos verdes e maduros); Julia Florczak (xícara com grãos); Weronika Karczewska (xícara vista de cima).
PDG Brasil
Quer ler mais artigos como este? Assine a nossa newsletter!