Direct trade na cafeicultura. O comércio direto de café especial é um modelo eficaz?
O comércio direto de café é um modelo de comercialização que promete alcançar uma cadeia de valor mais forte por meio da minimização do número de intermediários. Trata-se de um conceito fortemente ligado aos ideais da cultura do café da terceira onda, muitas vezes descrito como uma ferramenta utilizada para permitir a “relação café”, onde o produtor e o comprador estão diretamente ligados para melhorar a transparência, a rastreabilidade e a qualidade.
Acabar com os tradicionais compradores e vendedores intermediários para melhorar a comunicação direta e maximizar o lucro para ambos os lados faz sentido, e parece ótima ideia em teoria. No entanto, na prática, o comércio direto nem sempre é tão simples e, frequentemente, os produtores carregam o fardo das suas falhas, se fracassam.
Para ter uma noção melhor de como o comércio direto funciona hoje, falamos com Ricardo Otero da Suprafé, Connie Kolosvarie da Café Femenino e Blanca Castro da Aliança Internacional das Mulheres do Café. Continue a ler para saber o que disseram.
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O QUE É O COMÉRCIO DIRETO?
O termo comércio direto começou a ser usado pelos torrefadores de café para descrever a prática de comprar diretamente dos produtores, e tem por objetivo eliminar o papel tradicional do exportador e do importador.
É uma maneira de negociar café que se concentra em uma relação direta entre produtor e comprador para melhorar a comunicação, a qualidade, a transparência e a sustentabilidade.
O comércio direto surgiu pela primeira vez em resposta à cadeia de abastecimento de café tradicionalmente segmentada, que tem sido historicamente criticada por uma baixa transparência e rastreabilidade. Embora as coisas estejam mudando, no modelo tradicional, os produtores de café têm menos poder de negociação, menos lucro e têm mais dificuldade de se engajar no controle de qualidade ou nos sistemas de produção sustentáveis.
Essa cadeia de fornecimento desconectada também aumenta a lacuna entre o produtor e o consumidor, o que pode reduzir as chances de o café ser adquirido de forma ética.
De acordo com o Ethical Coffee, os defensores do comércio direto afirmam que o modelo constrói relações mutuamente benéficas e respeitosas entre compradores e produtores individuais ou cooperativas. Alguns torrefadores também podem optar por seguir esse caminho porque querem ter mais controle sobre todas as variáveis. Isso se estende da qualidade do café às questões sociais e preocupações ambientais na origem.
É importante lembrar que o comércio direto é uma abordagem, e não uma certificação. Isso significa que, quando se vê a etiqueta “produto do comércio direto” na embalagem de café, não significa necessariamente que nenhum intermediário tenha participado; apenas que o comprador ou a torrefação tenha comunicação direta, de alguma forma, com o produtor. Alguns torrefadores deixam de usar o rótulo para evitar confusão, enquanto outros o interpretam e aplicam de forma mais livre.
Ricardo Otero é o Presidente e Diretor Geral do Supracafé, uma grande torrefação espanhola. Ele diz que é bastante raro encontrar um “verdadeiro” modelo de comércio direto. “Há sempre pessoas no meio”, diz ele.
“[Por meio de modelos de comércio direto], o produtor e o consumidor discutem o preço e a qualidade, mas ninguém [que eu conheça] pode dizer que compra ‘direto’ do produtor.”
“Não conheço nenhum pequeno produtor [que controle] o processo de exportação por si só. Eles sempre precisam de alguém para ajudar.”
UMA EMPRESA DE ALTA MANUTENÇÃO E, MUITAS VEZES, DE ALTO RISCO
O comércio direto exige que tanto os produtores como os compradores tenham acesso a determinadas competências e recursos, a fim de funcionarem com eficácia. Sem esses elementos, a transação pode facilmente se tornar confusa e ambos os lados ficarão expostos e vulneráveis.
Além disso, uma vez que o modelo de comércio direto está longe do status quo do comércio de café, carece posteriormente de regulamentos e enquadramentos pré-existentes para que as partes envolvidas sejam protegidas.
OS RISCOS
Muitas questões podem surgir quando duas pequenas empresas participam no comércio não regulamentado. Alguns dos principais riscos associados ao comércio direto incluem:
CONTRATOS E QUESTÕES DE PAGAMENTO
Com menos regulamentação e falta de contratos padronizados, o risco de não cumprimento de ambos os lados é elevado. Isso significa que o produtor pode acabar não sendo pago, e o comprador pode acabar sem o produto.
ENTREGA OU QUALIDADE NÃO CONFIÁVEL
O café em si pode ficar aquém das expectativas e sem controles, não há rede de segurança. Isso significa que tanto o produtor como o comprador podem ser colocados em risco financeiro.
BUROCRACIA E LOGÍSTICA IMPRATICÁVEIS
Com menos partes envolvidas, a responsabilidade de gerir documentos rigorosos e logística complicada fica com cada um dos dois jogadores. Muitas vezes, um ou ambos não terão as competências ou os recursos necessários para lidar com esta carga de trabalho extra.
MENOS FORMALIDADE
O foco nas relações pode, às vezes, conduzir às práticas informais e à falta de regras, organização, e de prestação de contas. Também significa que, se a gestão mudar, a entrega torna-se mais difícil.
FLEXIBILIDADE REDUZIDA
Em geral, a menor escala no comércio direto significa que o tamanho das operações (e, portanto, os recursos e a liquidez financeira) são mais restritos. Isso significa que tanto o produtor como o comprador têm menos capacidade de absorver o risco se algo der errado.
AS LACUNAS
O comércio direto requer tempo e esforço. Entretanto, para muitos, as habilidades, os recursos, e a informação requeridas significam que o retorno do investimento às vezes não seja satisfatório o suficiente.
Connie Kolosvarie é a diretora do Café Femenino com Comércio de Produtos Orgânicos. Ela identifica as seguintes “lacunas” que tanto os produtores como os compradores podem sentir.
TAMANHO DA OPERAÇÃO
Nos modelos de comércio direto, se a capacidade de produção for baixa, poderá haver uma baixa diversidade de produtos, como acontece com muitos grupos pequenos de produtores. Isso aumenta drasticamente o risco para o produtor e para a torrefação.
“Pode ser uma posição frágil”, afirma Connie. “Mais locais de produção e mais compradores tornam ambos os lados da equação mais fortes se a torrefação ou o produtor não puderem cumprir o seu compromisso.”
As atividades também raramente são escaláveis, e a baixa capacidade de compra ou venda pode simplesmente acabar por não valer a pena para ambos os lados. Além disso, a compra de pequenas quantidades, direto da origem, é geralmente mais cara e os custos de envio só por si podem engolir os lucros.
ALFABETIZAÇÃO FINANCEIRA
“Os pequenos grupos de produtores são compostos por muitos agricultores individuais que podem ou não ter recursos para se defender”, diz Connie. “A falta de conhecimento sobre o mercado cafeeiro, por exemplo, pode ser um sério obstáculo para as negociações, a menos que a organização tenha alguém disponível com essas habilidades.”
Um entendimento de outros tópicos, tais como operações de supply chain, financiamento, pré-financiamento, risco e liquidez (todos cruciais para negociar qualquer mercadoria) é ainda pouco acessível a muitos produtores e torrefadores que operam em menor escala.
COMUNICAÇÃO
Os produtores estão muitas vezes à mercê de uma “divisão digital”. O acesso à Internet não confiável e o sinal de telefone ruim podem tornar a comunicação muito difícil.
As barreiras linguísticas e culturais também são obstáculos comuns para ambas as partes e podem constituir uma importante fonte de problemas.
REDE DE CLIENTES
“É muito difícil para um único produtor de café, de pequena escala, em uma comunidade remota no Peru, encontrar e contatar comércios diretos com uma pequena quantidade de café, por exemplo, em Seattle, sem assistência”, explica Connie.
Os pequenos agricultores frequentemente não têm uma rede de contatos no mercado do café e ferramentas para melhorá-la, o que muitas vezes inclui a utilização das redes sociais e da Internet de forma mais ampla.
Dificuldades semelhantes também existem para os torrefadores. A criação de uma rede global de produtores que seja confiável e ofereça qualidade, certificações e preços de acordo com suas expectativas não é uma tarefa fácil.
O QUE É NECESSÁRIO PARA QUE O COMÉRCIO DIRETO FUNCIONE?
Para que funcione, as lacunas descritas acima precisam ser preenchidas. No entanto, além disso, Connie diz que existem alguns fatores “não negociáveis” que devem estar presentes para que o modelo de comércio direto funcione com eficácia.
Em primeiro lugar, ela diz: “Para os [bons] negócios, é necessário que se tenha uma excelente comunicação.” Ela recorda que o Café Femenino trabalhou no passado com um grupo de produtores bolivianos. No entanto, ela diz: “De repente, a liderança cooperativa mudou e [muitas das habilidades que tinham] também, então a venda de café se perdeu e isso prejudicou os produtores.”
Habilidades como enviar e-mails, organizar pré-financiamentos e revisão de contratos tiveram de ser reaprendidas pela nova liderança. “Demorou alguns anos para voltar ao normal”, explica Connie.
Além dessas competências-chave, a capacidade de comunicar sobre o produto que está sendo comercializado também é essencial. No entanto, isso geralmente requer uma compreensão profunda da qualidade do café, da produção, dos métodos de processamento e dos esquemas de certificação, o que nem sempre é passado para muitas torrefações e produtores menores.
Para o comprador, existe uma variedade de habilidades adicionais que são igualmente importantes e precisam estar em vigor. Os sistemas de logística de importação, certificações e um grupo local para logística de exportação, como transporte, moagem e armazenamento, também são necessários. Também precisa haver ao menos uma pessoa alocada para lidar com logística, controle de qualidade, pré-financiamento, faturamento, seguro e comunicação, de acordo com Connie.
“É preciso uma equipe dedicada”, diz ela. “Que torrefação não gostaria de entrar num avião e voar para a África Oriental e atravessar uma fazenda de café? É uma excelente experiência para aqueles que têm a rede e os recursos para fazer funcionar, mas levar o café da fazenda para a torrefação é algo completamente diferente.”
O “INTERMEDIÁRIO”: OBSOLETO OU INDISPENSÁVEL?
Ao longo dos anos, os comerciantes de café têm sido criticados pelo seu papel na cadeia de abastecimento, o que alguns acreditam ser desnecessário. O comércio direto surgiu como uma resposta a isso: Uma ideia de que o intermediário poderia ser removido para melhorar o lucro e as relações para todos os outros.
Mas as percepções – e os papéis – estão mudando. Blanca Castro é Gerente de Divisão da Aliança Internacional das Mulheres do Café (IWCA). Ela diz: “Os exportadores e os importadores compreenderam que, com uma melhor qualidade, os preços são melhores e, agora, os produtores também estão percebendo isso.”
Em teoria, o comércio direto permite um diálogo que faz com que os produtores compreendam e melhorem a qualidade do seu produto – e, por fim, obtenham um preço melhor. No entanto, compradores e produtores precisam do conhecimento e das habilidades de comunicação necessárias para ter uma conversa altamente técnica sobre o café. É aqui que entram os intermediários.
Eles também têm as habilidades, a rede e a capacidade de risco que podem não estar presentes nos produtores ou compradores. Blanca pergunta: “Sem o intermediário, quem conseguirá cerejas de um produtor em Huehuetenango, nas terras altas da Guatemala Ocidental?”
Connie diz que durante a pandemia de Covid-19 isso se tornou ainda mais relevante. “Os cafés fecharam em março aqui nos EUA no momento em que a colheita nova estava quase pronta para chegar.”
“O fechamento causou uma pausa de um mês na cadeia de abastecimento dos EUA e o café não tinha para onde ir. Felizmente, porque somos diversificados, pudemos enviá-lo para outros lugares onde as lojas ainda estavam abertas, e os nossos clientes mais fortes também se ajustaram vendendo mais online, mas ainda assim houve um atraso.”
“Conseguimos mudar as coisas e manter tudo em movimento devido à diversidade de torrefações para quem vendemos. No entanto, se uma única torrefação viesse a experimentar essa situação, o impacto do atraso [sobre o produtor] poderia ter sido muito mais profundo.”
Ricardo, do Supracafé, diz que a transparência e o bom relacionamento são os elementos verdadeiramente transformadores do modelo de comércio direto, em vez da eliminação dos intermediários.
“Os intermediários são necessários”, diz. “Ao comprador, eles oferecem informações locais sobre os produtores, as qualidades disponíveis, os preços de mercado, os tempos de colheita. Para o produtor, eles oferecem conhecimento comercial e financeiro, armazenagem, embalagem, logística e uma rede de compradores.”
Cada agente da cadeia de fornecimento tem os seus pontos fortes e fracos. Os produtores conhecem a terra e o processo de crescimento do café. Os torrefadores destacam-se por adicionar valor e revelar a qualidade do café verde. Os comerciantes são peritos em gerir o risco, planejar a logística, a comunicação, e gerar uma rede dos compradores. Em última análise, cada jogador traz um conjunto único de habilidades para a mesa.
É POSSÍVEL QUE UM MODELO HÍBRIDO FUNCIONE PARA TODOS?
Connie e Blanca insistem que o relacionamento e o diálogo que caracterizam o comércio direto são cruciais para negociar café. Oferecem uma educação valiosa em ambos os lados da cadeia de fornecimento, o que possibilita uma melhor comercialização e um café de melhor qualidade.
Se os comerciantes são necessários, eles precisam focar na obtenção do mesmo nível de rastreabilidade e transparência na negociação – apontando para um modelo híbrido em potencial.
Blanca diz que hoje os torrefadores modernos preferem encontrar-se com os produtores, monitorar a situação, e compreender a origem. Embora ainda precisem de intermediários para lidar com a logística de tudo, ela diz que para ela, isso ainda é uma forma de comércio direto.
“Para mim, uma parte importante do modelo de abastecimento do Café Femenino é o relacionamento e a transparência”, acrescenta Connie. “É por isso que muitas pessoas gostam da ideia do comércio direto, mas sempre oferecemos esse nível de participação com os produtores para os nossos clientes de torrefação.” Ela explica que um relacionamento comercial direto híbrido liga torrefadores às fazendas sem pedir que os torrefadores corram o risco de fazer a importação.
Embora a ideia por trás do comércio direto tenha iniciado com a eliminação de intermediários, hoje, o objetivo está em começar a mudar o foco para um bom diálogo e transparência elevada. A educação é um tema incrivelmente importante no setor cafeeiro, e, ao se concentrar mais na forma como o café é comercializado e menos no quanto a cadeia é longa ou curta, todos podem se beneficiar.
Blanca finalmente diz que hoje o comércio direto não se trata de eliminar o intermediário, mas sim de colocar os atores da cadeia de suprimento no centro das atenções e colocar o valor certo sobre esse serviço, sem exploração. Ela diz que se trata de alinhar a mentalidade e aumentar a transparência para melhorar a sustentabilidade. Se fizermos isso, certamente todos podem se beneficiar – produtor, comerciante, torrefador e consumidor.
Tradução: Daniela Andrade.
Créditos das fotos: Julio Guevara e SupraCafe.
PDG Brasil
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