As torrefações nórdicas ainda são tão inovadoras quanto antes?
Não há como negar a influência das torrefações nórdicas no café especial como o conhecemos hoje. Graças aos pioneiros desse setor em países como Noruega, Dinamarca, Suécia e Finlândia no final dos anos 90 e início dos anos 2000, o café especial tornou-se popular ao redor do mundo.
O alcance global da cultura nórdica do café é parcialmente atribuído às altas taxas de consumo da bebida nesses países. Em 2016, as nações escandinavas correspondiam a cinco das seis maiores consumidoras de café per capita no mundo.
A rica história de consumo de café da Escandinávia, assim como a preferência por cafés de maior qualidade e origem sustável dos consumidores locais, só continuou a impulsionar a inovação na indústria internacional de café.
No entanto, está se tornando cada vez mais evidente que outros locais como EUA, Austrália e certos países do Sudeste Asiático têm uma influência significativa na indústria global de café. Isso traz uma questão importante: as torrefações nórdicas ainda têm a mesma relevância nesse mercado? Para descobrir, falei com Tim Wendelboe e Klaus Thomsen – dois dos torradores mais renomados da Escandinávia.
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Como as torrefações escandinavas ajudaram a pavimentar o caminho para os cafés especiais?
Antes de explorarmos como as torrefações nórdicas moldaram o café especial, primeiro precisamos olhar brevemente para a história do café na Escandinávia que remonta ao final do século XVII. Porém, foi após uma proibição ao álcool na Noruega no início de 1900 que os nórdicos começaram a beber mais café. O café então se tornou um alimento básico da cultura escandinava.
Até hoje, ainda é costume nos países nórdicos preparar café para visitantes e convidados. Muitos escandinavos também participam de pausas para café tradicionais, conhecidas por vários nomes, dependendo do país:
- Fika é popular na Suécia, que é quando as pessoas se reúnem para socializar e desfrutar de um café com doces assados;
- Na Islândia, Kaffitímar é quando as pessoas param para tirar um tempo do seu dia para relaxar e beber café;
- Kaffepause na Dinamarca é a tradição social de fazer uma pausa espontânea para o café.
Países nórdicos e cafés especiais
Acredita-se que o termo “café especial” foi usado pela primeira vez por Erna Knutsen em uma edição de 1974 do Tea & Coffee Journal. Além disso, sabe-se que certos torradores escandinavos desempenharam um papel fundamental no pioneirismo do café especial durante o final dos anos 90 e início dos anos 2000.
De acordo com Klaus Thomsen, sócio do Coffee Collective (Dinamarca), os países escandinavos compram mais arábica lavado do que canéfora há muito tempo. “Isso ajudou a estabelecer uma base de consumidores que prefere cafés com sabor mais limpo”, ele diz.
“Na Dinamarca, as pessoas foram apresentadas a cafés quenianos mais aromáticos e ácidos antes de outros mercados. Além disso, na Noruega, a renomada torrefação Solberg & Hansen vem comprando cafés complexos e saborosos há algum tempo”, acrescenta.
Tim Wendelboe é o fundador da torrefação que leva seu nome em Oslo, Noruega. Ele também concorda que a Solberg & Hansen desempenhou um papel fundamental na formação do mercado de café nórdico ao comprar volumes significativos de café dos leilões da Cup of Excellence no final dos anos 1990 e início dos 2000.
Naquela época, a Solberg & Hansen também fornecia os grãos para a maioria das cafeterias de Oslo. “Os países nórdicos mostraram um interesse precoce nos cafés de origem única. No início dos anos 2000 já era comum que os torradores comprassem mais desses grãos do que de blends”, ele diz.
A Criação do Campeonato Mundial de Baristas
Tim explica como o setor cafeeiro norueguês ajudou a estabelecer o primeiro Campeonato Mundial de Baristas – um dos eventos mais prestigiados da indústria cafeeira.
“O norueguês Alf Kramer teve a ideia de realizar o primeiro Campeonato Nórdico de Baristas, que aconteceu em 1998”, ele me diz. “Em 2000, o primeiro Campeonato Mundial de Baristas foi realizado em Monte Carlo.”
O competidor norueguês Robert Thoresen ficou em primeiro lugar na competição, com baristas islandeses e dinamarqueses em segundo e terceiro, respectivamente. “Isso ajudou a estabelecer os nórdicos como uma região líder na indústria global de café”, diz Klaus.
“Em 2007, após competir no WBC e ganhar mais experiência, Tim e eu estabelecemos nossas próprias torrefações. Nós compartilhamos um estilo semelhante negociar diretamente com os produtores e estabelecer relações de trabalho de longo prazo. Isso além de torrar perfis mais claros para evidenciar os sabores do café”, acrescenta.
Tim, por sua vez, enfatiza a importância da colaboração no desenvolvimento do mercado de cafés especiais na Escandinávia. “Estávamos famintos por conhecimento, e a única maneira de ganhar mais era trabalharmos juntos. Houve muita interação entre nós e éramos mais como colegas do que concorrentes. Era tudo sobre compartilhamento de conhecimento e aprendizado em conjunto”, diz.
A influência global das cultura do café e das torrefações nórdicas
Hoje, em muitas cafeterias ao redor do mundo, é impossível não perceber a influência das torrefações nórdicas. Isso inclui informações sobre a embalagem, detalhando quem cultivou o café e de onde ele veio, o design das embalagens e um crescente interesse do consumidor no café filtrado.
“O apoio das torrefações nórdicas aos leilões da Cup of Excellence, bem como nossa disposição em pagar mais por esses cafés, mostrou a outros torradores em todo o mundo que era possível vender esses cafés de forma lucrativa”, diz Tim.
Klaus concorda, dizendo: “O comércio direto e as relações de longo prazo com os agricultores inspiraram outros a fazer o mesmo. “Os dois primeiros cafés que o Coffee Collective comprou foram de duas fazendas na Guatemala e no Brasil”, acrescenta. “Ainda trabalhamos com essas duas fazendas 15 anos depois.”
Uma predileção por torras claras
Indiscutivelmente, uma das influências mais significativas que as torrefações nórdicas tiveram na indústria global de café são os perfis de torras mais claros. No entanto, Tim explica que nem sempre foi assim.
Quando ele abriu sua torrefação em 2007, eles torravam perfis mais escuros. “Um exportador trouxe amostras de café para a torrefação que tinham um sabor incrível, mas nosso café tinha gosto de queimado. Foi aí que percebi que precisávamos mudar nosso estilo de torra”, diz. Após participar de competições de torra usando perfis mais leves, Tim diz que notou outras empresas de café seguindo o exemplo.
Em uma nota semelhante, Klaus ressalta que nem todos os torradores escandinavos usam perfis de torra semelhantes. “Eu não gosto particularmente do termo ‘torra nórdica’, pois acho que pode haver enormes diferenças entre os torradores escandinavos”, explica.
“No entanto, nossa abordagem para torrar o mais claro possível sem subdesenvolver o café tem sido muito influente na indústria global de café. É mais sobre confiar em seu próprio gosto, em vez de tentar acomodar uma preferência mais geral. Acreditamos que, se gostarmos do café, os outros também gostarão”, ele acrescenta.
As torrefações nórdicas ainda têm a mesma relevância no universo dos cafés especiais?
Embora devamos dar crédito aas torrefações nórdicas por ajudarem a desbravar a cultura do café especial, está se tornando cada vez mais claro que outros países também a influenciaram.
Muitas torrefações renomadas dos EUA e da Austrália – incluindo Onyx Coffee Lab, ONA Coffee e o Proud Mary – têm um impacto claro na formação de tendências na indústria internacional de café.
Como exemplo, pode-se citar o número crescente de torradores australianos que congela os grãos torrado para preservar o frescor e melhorar a distribuição do tamanho da moagem.
Além disso, nos últimos anos, tornou-se mais comum ver concorrentes da WBC de países como EUA, Canadá, Austrália, Japão, Coréia do Sul, Nova Zelândia, Holanda e Taiwan participarem das rodadas finais.
Em última análise, isso levanta a questão: as torrefações nórdicas ainda têm tanta influência quanto antes?
“Na minha opinião, os países nórdicos ainda são pioneiros no setor de cafés especiais em alguns aspectos, como nos perfis de torrefação”, diz Klaus. “No entanto, falando em termos de competições, acho que a influência agora é mais global e menos localizada. A inovação em cafés especiais pode ser muitas coisas – desde melhorar sua bebida em lote até ajustar um perfil de torrefação”, ele acrescenta.
Entenda o que queremos dizer com inovação
De acordo com Klaus, trata-se de apresentar ideias para novos produtos que possam mudar a experiência do café. “Acho que os escandinavos são um pouco céticos e questionam se um novo produto ou método de preparo realmente oferece benefícios, ou se tem mais a ver com marketing”, afirma.
Ele acrescenta ainda que é preciso um olhar mais amplo sobre a inovação em cafés especiais. “Também é preciso considerar o lado ético do café. Entender como podemos apoiar os agricultores a agregar mais valor, reduzir nosso impacto ambiental e criar melhores ambientes de trabalho”, diz.
Tim concorda, dizendo: “Acho que as pessoas esquecem que o café é uma experiência, não apenas um produto. Algumas sempre procuram a próxima grande transformação, mas acho que ainda é sobre servir um excelente café e criar experiências de alta qualidade para o cliente. Mas há um limite para o quanto você pode fazer isso”, conclui.
O que o futuro reserva?
Com torrefações e cafeterias em outros países ajudando a impulsionar as tendências em cafés especiais, ainda buscaremos inspiração nos países nórdicos?
Klaus prevê que, em termos de sustentabilidade, os torradores escandinavos continuarão a ser influentes. “Acho que mais torradores vão buscar ser mais sustentáveis e transparentes com suas práticas. Esperamos que eles também sejam transparentes e publiquem os preços que pagam aos agricultores”, diz.
Tim concorda, dizendo: “Espero que mais torrefações, incluindo multinacionais, comecem a pagar preços melhores aos fornecedores. E que mais café possa ser cultivado de maneira sustentável, como a agricultura regenerativa.”
Ele também acredita que os consumidores nórdicos desempenham um papel igualmente fundamental na condução da inovação. “Os consumidores escandinavos geralmente estão dispostos a pagar mais pelos grãos. Isso significa que as torrefações podem continuar comprando cafés de alta qualidade”, diz.
O café especial como o conhecemos hoje deve muito aos países nórdicos. No entanto, é evidente que outros países também estão moldando o setor de cafés especiais de maneiras novas e diferentes.
Independentemente de quais países são responsáveis pela “maior” inovação, é importante reconhecer que cada um desempenha um papel crucial na influência da indústria global do café.
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Créditos das fotos: Dorothee Brand, Benjamin A. Ward, Coffee Collective
PDG Brasil
Traduzido por Daniela Melfi
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