Guia completo do café conilon especial, do cultivo ao consumo
Populações de café da espécie canéfora, como robusta e conilon, têm a reputação de possuírem um perfil inferior em relação ao 100% arábica. O senso comum sobre eles é que tem forte amargor e sabores desagradáveis.
No entanto, esta visão começou a mudar. Nos últimos anos, produtores que direcionaram seu trabalho na melhoria de qualidade possibilitaram que o canéfora ganhasse espaço no universo dos cafés especiais.
A Fazenda Venturim, no norte do Espírito Santo, produz conilon especial – complexo, rico em doçura e aromas agradáveis – e seus cafés podem ser encontrados em cafeterias e torrefações dentro e fora do Brasil.
Eu conversei com o produtor e diretor comercial da Fazenda Venturim, Lucas Venturim, e com experts de café para saber mais sobre o conilon especial. Confira o que eles disseram.
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O que é o café conilon?
Segundo pesquisas, os cafés canéfora têm sua origem relatada na África Central, que compreende países como Congo, Camarões e Sudão. A variedade conilon foi nomeada a partir da área onde ela foi encontrada, com grande concentração às margens do rio Kouillou e, no Brasil, teve a escrita adaptada para o nome que usamos até hoje.
O canéfora se desenvolve melhor em locais mais quentes, mais severos e de baixa a média altitude. No Brasil, Espírito Santo, Sul da Bahia e Rondônia encabeçam a produção da espécie; Rondônia é conhecida por seus robustas e o Espírito Santo pelo conilon, majoritariamente cultivado em altitudes de até 600m e em locais mais próximos ao litoral.
Devido a um amplo trabalho de pesquisa encabeçada pelo Incaper do Espírito Santo e matriz genética da espécie, as plantas são em geral mais adaptáveis às adversidades climáticas e às principais pragas e doenças. São cafeeiros que, quando corretamente manejados, apresentam maior potencial produtivo e um porte mais cheio.
Lucas Venturim e o irmão Isaac estão à frente da Fazenda Venturim, que fica em São Domingos do Norte, no noroeste do Espírito Santo. Lucas conta que a microrregião possui um clima semi-árido, com chuva em torno de 900 mm por ano, muito concentrada durante o verão.
Segundo ele, o conilon chegou aos produtores como uma alternativa de geração de renda entre as safras de arábica. Para isso, a colheita do conilon era antecipada; os frutos eram colhidos ainda imaturos e, em função da estrutura insuficiente de secagem, eram geralmente secos rapidamente e em altas temperaturas.
No final, o produto tinha baixa qualidade, um gosto desagradável e era torrado em excesso, como outros cafés de características similares. Este conjunto de fatores foi determinante para a construção da má-fama do conilon.
Buscando qualidade para o conilon
Lucas conta que até o início dos anos 2000 o conilon não era viável para sustentar a família. “Neste período realizamos uma transição na fazenda, meu irmão Isaac assumiu a operação. Não tínhamos recursos e não existia mercado para o conilon especial, o mercado de café arábica especial ainda dava os primeiros passos”.
Eles decidiram fazer um plano para a ampliação do conilon de alta qualidade na fazenda. As ações incluíram a renovação das lavouras, a instalação de estruturas para o beneficiamento e estudos sobre maturação, colheita e melhoramento do café.
Eles aplicaram técnicas de manejo e beneficiamento até então pouco difundidas e inéditas para o conilon (como a prática da despolpa), com o objetivo de valorizar seus atributos e entregar um produto de alto valor agregado. E foram pioneiros no alcance dos resultados.
Em 2017 o conilon especial começa a ganhar as prateleiras do Brasil e em 2018 as primeiras exportações aconteceram com remunerações acima da média de mercado.
Novas ações, novo conilon
O trabalho na Fazenda Venturim partiu de um princípio simples: “A base para você fazer um café de qualidade é um fruto saudável.”, diz Lucas.
O manejo recebe ações específicas para o conilon. Exemplos são a poda de ciclo, onde os galhos são retirados de forma planejada para manter uma renovação contínua da planta, e a desbrota, retirada de brotos excessivos que surgem na madeira da planta. Isto ajuda que o cafeeiro distribua a energia da melhor forma possível pelos galhos.
Além disso, a colheita passou a ser apenas de frutos maduros e o processamento do café mudou. Os Venturim adquiriram equipamentos como terreiros suspensos, despolpadores e secadores. Eles também aderiram a projetos inovadores sobre o impacto da fermentação para aumentar a qualidade do conilon.
Um destes projetos conectou a Fazenda Venturim à Rússia. Em 2017, o professor Lucas Louzada Pereira, do campus de Venda Nova do Imigrante do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), levou amostras do conilon da família Venturim para o Roasters Village daquele ano, em Belgorod, um evento em que diversos mestres de torra têm seu café avaliado diretamente por consumidores finais em cafeterias.
A russa Valentina Moksunova atua no mercado de cafés há 11 anos e é a diretora geral da Hummingbird Coffee, empresa que importa café para a Rússia. Ela explica que os participantes do Roasters Village receberam o café apenas na hora e fizeram a torra da melhor maneira que sabiam.
Servido de surpresa e às cegas, o conilon especial brasileiro encantou os visitantes. “Teve um rapaz que insistiu muito para que vendêssemos o café pra ele, e acabamos dando a ele o restante do conilon que tínhamos, ao ver o quanto ele amou o café”, revela Valentina.
“Para mim isso foi um sinal claro dos consumidores de que este era um café que eles adorariam ver no mercado.”
Em 2018 ela voltou ao Brasil e visitou a Fazenda Venturim. Comprou um lote após provar os conilons especiais da propriedade. “Senti algo que nunca senti em nenhum café antes, foi simplesmente diferente, e foi o único caso na minha carreira de compradora [de café verde] em que tomei a decisão de comprar o café ainda na fazenda.”
Valentina diz que não teve preconceitos ao provar conilon. “Percebi que o que causava a antiga impressão acerca dos robustas [nome usado no mercado internacional para cafés canéfora] eram os defeitos, os problemas de tecnologia na produção. Nós conhecíamos os sabores dos defeitos que sempre existiram.”, diz.
Avaliando o conilon especial
O conilon de qualidade tem algumas características principais que o destacam do arábica: pesquisadores identificaram que ele tem uma concentração maior de cafeína no grão, em média o dobro do arábica; mais que o dobro de ácidos clorogênicos, que são antioxidantes; ligeiramente menor teor de açúcar; maior solubilidade (tende a resultar em cafés mais intensos), menor acidez.
Mas descrever o perfil de um conilon especial pode ir bem além disto. Em 2010, o CQI, Coffee Quality Institute (ou Instituto para a Qualidade do Café, em tradução livre), lançou o Protocolo de Degustação de Robustas Finos, válido para cafés robusta e conilon.
O café é avaliado pelos seguintes atributos: fragrância/aroma, sabor, salinidade/acidez, amargor/doçura, corpo, equilíbrio, retrogosto, uniformidade, limpeza e nota do conjunto.
Lucas destaca algumas diferenças de avaliação em relação ao protocolo de cafés arábica. “O Q-Robusta Grader pensa na acidez junto com a salinidade, porque pouca salinidade e alta acidez é o ideal”, explica.
Outra coisa que é avaliada em conjunto é o amargor com doçura. “As pessoas têm em mente que o canéfora tem que ser mais amargo e não tem que ser… há um certo amargor que é bom no café, que é bem comum em todos os cafés, mas desde que esteja em equilíbrio”.
Todos estes atributos listados no protocolo podem se manifestar de muitas maneiras numa xícara. Segundo Lucas, por ser uma espécie cuja flor depende da polinização cruzada para virar fruto, o conilon constrói um grande leque genético. São muitos conjuntos que se reproduzem através de clones – quando se retira parte da “planta-mãe” para dar origem a outro pé de café.
Lucas explica: “Segundo os pesquisadores, uma variedade é um conjunto de 10 a 15 materiais genéticos diferentes que precisam ser plantados juntos por serem compatíveis, para que haja um bom índice de polinização.”. A Fazenda Venturim tem quatro variedades principais de conilon na lavoura — vitória, jequitibá, diamante e centenário — e cada uma tem entre 10 e 15 materiais genéticos.
Devido à diversidade genética, cada variedade oferece perfis diferentes e que podem mudar ainda mais a depender do processamento. “A gente diferencia [os cafés] mais pelos processos do que pela genética, mas também estamos colhendo alguns clones separadamente para estudos e produção de microlotes”.
Processos fermentativos vão conferir complexidade ao conilon, segundo Lucas. “Temos uma linha mais frutada, com frutas vermelhas e roxas e até frutas secas. Também fazemos um processo sem adição de levedura. A fermentação natural terá mais nota floral e de especiarias, como cravo e canela.”
Como torrar o café conilon especial?
Para garantir que todo esse trabalho no cultivo e processamento chegasse com qualidade ao consumidor final, eles decidiram estender o raio de ação até a torra. Hoje eles também vendem o café que torram na propriedade.
A torra do conilon também pede ações específicas por causa de suas características inerentes – a começar por uma estrutura celular mais rígida dos grãos. “Ele se comporta como um grão mais denso. Então a abordagem de torra pede mais energia desde o início.”, explica Lucas.
Segundo ele, deixar para aumentar a energia só no meio da torra pode resultar em um grão de café cru. Por outro lado, temperatura muito alta e excesso de energia podem queimar o grão.
A maior rigidez do conilon também pode atrasar um pouco o primeiro crack, porque será mais difícil que ele se expanda.
Outra dica de Lucas ajuda a não perder a doçura na torra. “Um Maillard mais lento no começo e uma finalização não tão lenta”. Mas ele alerta para usar isto com cuidado nos conilons fermentados. “Nos cafés fermentados e mais exóticos, se você der doçura demais nele você pode acabar encobrindo as notas mais delicadas”, diz.
“A doçura é um desafio”, diz Eystein Veflingstad, norueguês radicado no Brasil que é mestre de torras e proprietário da 3ª Onda Consultoria em Cafés. Seu primeiro contato com o conilon da Fazenda Venturim foi em 2015.
Eystein diz que é importante achar o ponto mais doce no meio da torra, onde o conilon fica mais expressivo e mais doce. É tentar perder o mínimo possível de doçura, mas ainda sendo possível desenvolver o café.
“Você pode achar os mesmos [aromas] frutados e chocolates [em relação ao arábica], é o mesmo café que se dá muito bem em torras muito desenvolvidas, mas com técnica boa”, diz.
Estas torras mais desenvolvidas serão mais favoráveis ao uso do conilon no espresso e nas bebidas com leite, por causa de seu sabor mais achocolatado e intenso.
Eystein também aconselha um olhar atento ao fim da torra. “Controlar os dois últimos minutos da torra é a chave, a temperatura final é muito importante.” Segundo o consultor, a maior parte dos profissionais de torra está mais acostumada aos perfis de arábica, que terminam em temperaturas menores. No caso do conilon, esta lógica pode fazer a torra terminar crua. “O canéfora pode subir sete, oito graus a mais em relação ao arábica sem queimar e sem sair cru”, diz.
A xícara do conilon: dicas de preparo
As particularidades do conilon também requerem uma abordagem diferente no preparo do café para quem está acostumado ao arábica.
Por conta da presença ligeiramente menor de açúcares, os grãos de conilon podem apresentar menos doçura, e isto pode fazer o amargor ser percebido mais facilmente. Além disso, sua acidez é mais baixa. Ele também possui um maior índice de sólidos solúveis, ou seja, tem mais substâncias que conseguem ser facilmente levadas para a xícara durante a extração – e isto resulta em uma bebida de sabor mais intenso.
Lidiane Santos é barista, instrutora e proprietária da Kaffe Torrefação e Treinamento, em Recife. Ela conta que sempre fez questão de que outras pessoas conhecessem o conilon. “Eu fazia manobras para ter meus alunos provando canéforas de qualidade nas minhas aulas desde 2013”.
Ela oferece dois cafés da Fazenda Venturim para venda em pacotes e também colocou o conilon no cardápio de coados da cafeteria. Lidiane é enfática ao afirmar que o conilon especial apresenta uma grande diversidade nas notas sensoriais.
“São cafés muito aromáticos. O que surpreende neles é o aroma, que é diferente; vem nibs de cacau, chocolate, floral, muito floral, e fruta, bastante frutado. Produzir café qualquer um produz, mas trazer este sensorial, esta experiência, não é todo mundo,” conta.
Lidiane diz que a alta solubilidade do conilon pode ser desafiadora, pois fica fácil extrair muitos solúveis do café e a xícara fica muito intensa. Ela recomenda começar testando receitas mais equilibradas. “Pegue uma receita de base e veja como o café se comporta em relação à granulometria e à proporção de água e café”. Ela também modula a quantidade de despejos de água se necessário.
A ideia é que o amargor natural do conilon seja minimizado e não se prolongue na boca, e que as notas sensoriais sejam percebidas com clareza por quem bebe.
SUGESTÃO DE RECEITA, POR LIDIANE SANTOS, DA KAFFE TORREFAÇÃO E TREINAMENTO
Moagem média para o V60 (que lembre açúcar demerara)
Moagem média grossa para Koar (mais grossa que açúcar demerara)
13g de café
200ml de água
Preparo:
Despeje 50ml de água em movimentos circulares e deixe hidratando por 30 segundos (a água irá escoar totalmente).
Adicione mais água em movimentos circulares até chegar em 150ml.
Em 1’15’’ adicionar o restante da água (com fluxo central e com a queda da água próximo ao coador) até chegar em 200 ml.
A extração deve terminar próximo aos 2 minutos.
Retirar o suporte e completar a xícara com água quente o volume final para chegar aos 200ml.
Uma boa xícara de café começa com uma boa matéria-prima. Por isto, um manejo apropriado na fazenda e processamentos de excelência revelam todo o potencial do conilon especial.
Uma torra adequada às suas características e bons métodos de preparo completam o ciclo e permitem que profissionais e consumidores de cafés de qualidade se desfaçam das concepções inadequadas que rotulam o conilon como um café inferior.
Assim, mais amantes do café podem apreciar conilons doces, complexos e ricos em aromas e sabores.
Crédito das fotos: Fazenda Venturim, Eudes Santana, Elizaveta Nikonova, Tatyana Baranova
PDG Brasil
Nota: Fazenda Venturim é uma patrocinadora do PDG Brasil
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