Manual básico da crema do espresso
A crema é a espuma mais clara que se forma durante a extração do café espresso e é parte fundamental da bebida, cujas características físicas apontam a qualidade da extração.
A evolução da crema caminha junto com a do café espresso, já que ambas ‘nasceram’ juntas, e são consideradas um par inseparável desde a criação do primeiro maquinário moderno que produziu a bebida então batizada como “café espresso”.
Neste artigo o PDG Brasil explora a história técnica e cultural da crema para compor o manual definitivo sobre a espuma do espresso, além de investigar se de fato a crema define o que é um café espresso de qualidade.
Ouvimos também dois especialistas em crema: Boram Um, barista campeão brasileiro de 2019 e 2022, da rede de cafeterias Um Coffee Co., e Paula Santini, doutora em agronomia e fisiologia vegetal e instrutora do curso de Classificação e Degustação de Café do SENAR/MG.
Leia mais para entender tudo sobre a crema do café.
Saiba mais sobre a história do maquinário de espresso no artigo “Evolução técnica: como as máquinas de café espresso evoluíram no século 21”
A crema do café: histórico
As características da crema do café espresso, como textura, cor e tempo de dissolubilidade, são intrinsecamente associadas à qualidade da bebida derivada de uma extração de café espresso.
No século 20, pela década de 30, o espresso se popularizou graças ao advento de tecnologias e inovações que permitiram a produção em escala do maquinário.
A “crema” do espresso foi reconhecida e nomeada como tal pelo empresário milanês Giovanni Achille Gaggia, da fábrica especializada Gaggia, em 1938, que incluiu o termo no texto da patente da tecnologia do sistema chamado de “Lampo”, a primeira válvula de alívio de pressão.
Promovida como um sistema de dispensário “fazedor de crema”, a “Lampo” é considerada a “virada” definidora da trajetória da evolução da máquina de espresso, que não mais operava com jatos de vapor, mas sim com pressão controlada da emissão da água.
Em 1947, Gaggia registrou sua segunda patente: um pistão que, ativado através de uma alavanca acoplada a uma mola, pressionava o café através do porta-filtro, e permitia a passagem da água quente pelos grãos finos em alta pressão e extraia a bebida com maior rapidez.
A consistência final da bebida se tornou encorpada, com potencial aromático superior, e que gerava no topo um “creme natural”, como o descrevia Gaggia. O impacto da “crema naturale” foi tamanho que a bebida hoje chamada de “espresso” (termo firmado na década de 1960, com a introdução da bomba motorizada por Ernesto Valente) foi nomeada inicialmente de “Crema Naturale”.
Mas quais seriam as características físicas, e visuais da crema, de fato um sinônimo de qualidade da bebida nos dias de hoje? Sim e não.
A química da crema e como ela se forma
Durante a torra do café, os grãos mantêm o CO2 gerado como subproduto, que é liberado completamente idealmente de 48 a 72 horas, ao se “descansar” os grãos. Durante a fase da formação da crema, na extração do espresso, a água entra em contato com o café moído a uma pressão de 9 bar, o que gera uma supersaturação de CO2 na água, que se move para a superfície em forma de bolhas. Essa é a crema do café espresso.
“São as frações proteicas e os polissacarídeos extraídos do café torrado que promovem a espumabilidade e estabilidade da crema”, diz Paula.
“A crema se dá por ser rica em açúcar natural, advindo do próprio fruto do café. A formação da crema se dá desde a nutrição do fruto enquanto ainda aderido à planta, em combinação com a torra e a pressão da água na extração (que acaba emulsificando o óleo natural do café). A qualidade da crema deriva então de reações entre compostos e a melanoidina do próprio café.”
Segundo a especialista, cafés processados de forma lavada possuem mais proteínas e polissacarídeos, ou seja, são de uma consistência mais “gorda” quanto a açúcares e gorduras, e geram uma crema mais grossa. A maioria dos grãos produzidos no Brasil é processada através da secagem natural, “não-lavados”, e geram pouca crema.
Quanto às distinções de crema entre arábica e canéforas, os cafés canéforas geram uma crema mais densa pois possuem duas vezes mais sólidos solúveis e cafeína, o que contribui para formar o corpo da bebida, explica Paula. “O arábica, em um blend, amplifica a qualidade e a doçura (…) o que falta em uma, é complementado pela outra”, diz ela.
Muitas cafeterias e marcas, inclusive de cafés de alta qualidade, optam por blends de robusta e arábica, pois, culturalmente, a crema é associada a café “forte”, “encorpado”, características importantes para certas culturas de consumo..
Qualidade de extração e a crema do café
A qualidade da crema é um critério importante para designar a qualidade da extração, o que não deve ser confundido com a avaliação da crema quanto à associação feita com a qualidade da bebida tirada.
Entretanto, diz Boram, a crema contribuiu de forma importante para o corpo e sensação tátil da bebida. “A qualidade visual da crema como um parâmetro de qualidade de espresso, vem da antiga referência do espresso italiano e do padrão illy. Hoje, ela pode indicar alguns fatores, principalmente de temperatura de água, super-extração e outros.”
A crema designa a regulagem dos fatores determinantes presentes na produção do espresso, variáveis como a regulagem de pressão, temperatura da água, granulometria do café moído, fluxo de água e mais.
“A ausência da crema na xícara pode apontar o uso de um grão torrado há muito tempo, má extração pelo barista (faltou pressão e temperatura) e ou ainda má qualidade da matéria-prima”, diz Paula.
Boram explica que: “a avaliação da crema do café é majoritariamente visual. A crema deve ter uma cor caramelada, com brilho, sem quebras ou aparência de óleos na superfície, consistente e elástica, e manter a consistência de em no mínimo de 2 minutos para cafés de torra mais clara”.
Densidade, cor e elasticidade são os elementos que compõem os critérios de avaliação da crema do café espresso.
Se a crema não for suficientemente densa, e se desfaz rapidamente na xícara, trata-se de uma sub-extração. As causas podem ser a granulometria excessivamente grossa da moagem, regulagem de pressão abaixo do ideal, ou pouca quantidade de café. Essa é a razão pela qual um café “lungo” apresenta uma quantidade menor de crema.
A elasticidade da crema é definida pela estabilidade da espuma na xícara durante os primeiros movimentos, tanto quando se mexe a xícara ou não. Quando o café é extraído logo em seguida à torra, o tempo para a eliminação do excesso de CO2 não foi suficiente, o que faz a crema produzir muitas bolhas, que se quebram ao meio e possuem baixa estabilidade.
O critério da cor é o mais complicado, e requer muito conhecimento e experiência do avaliador quanto a perfis de torra, espécies, características de cafés de diferentes origens, tipos de processamento e mais, principalmente quando se trata da extração de cafés de especialidade, os quais as variações dos grãos são inúmeras.
Qualidade da bebida e a crema do café
A crema também é classificada de forma organoléptica – a avaliação dos critérios de sabor, aroma, doçura, acidez e o retrogosto aplicados na designação de qualidade da bebida, de forma mais ampla e detalhista quando são cafés especiais. Avalia-se tanto a crema separada quanto a bebida com e sem a crema, para que se chegue à nota final.
O sabor da crema é tendencialmente mais amargo do que a bebida. Consequentemente, o café terá mais doçura e um gosto menos intenso se a crema for separada do líquido, no lugar de misturar a crema com o líquido, o que é a praxe.
Tal fato levou muitas personalidades do mundo do café a questionarem a real importância quanto aos indicadores de qualidade e sabor da crema em um café espresso. Boram acredita que, apesar do amargor superior da crema, “sem a crema haveria uma perda considerável em corpo e outros componentes aromáticos”.
“Deve-se sempre misturar (a crema) com uma colher para homogeneizar a crema e as partículas mais pesadas no fundo da xícara, o que melhora a experiência sensorial. Idealmente não se deve girar a xícara, por que isso não mistura a bebida.”
A mesma recomendação é dada por Paula: “É assim que há a fusão dos sólidos solúveis que estão concentrados em uma camada pequena (crema), misturando todos os sabores”.
Mas afinal, seria ou não a crema um fator determinante quanto à qualidade da bebida do café expresso?
Quanto à suposta superioridade de qualidade de um espresso sem a crema por conta do amargor, pesquisas científicas indicam que se trata de uma questão de preferência gustativa.
Um café, idealmente, deve ser consumido em até 5 minutos após a extração. De acordo com um estudo realizado por 13 pesquisadores de química de alimentos de diversas partes do mundo, a explosão de aromas ocorre durante os primeiros 2,5 minutos após a extração, independentemente de a crema ser de alta ou baixa estabilidade.
“Após a explosão inicial do aroma, a crema de baixa estabilidade oferece uma intensidade de aroma superior em relação à da xícara com estabilidade mais duradoura”, diz o estudo, que conclui ser uma questão subjetiva se as diferenças entre o tempo de liberação e percepção dos aromas da crema em relação ao todo da bebida podem ser percebidas por um consumidor ou não.
O único fator indiscutível é que, sem a crema, não haveria o café espresso, e seja com ou sem crema, o que importa é a experiência de consumo prazeroso do café.
Créditos: Nathan Dumlao (extração de espresso/destaque); Divulgação Gaggia (projeto de máquina de espresso); Ryan Concepcion (espresso na xícara cinza); banco de imagens (espresso sem crema e espresso extraído no copo de shot); Divulgação Um Coffee Co. (Boram Um); Bloss Sy (close do café no porta-filtro).
PDG Brasil
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