A importância da equidade de gênero na produção do café
De acordo com um relatório de 2018 da Organização Internacional do Café (OIC), apenas 20 a 30% das fazendas de café em todo o mundo são operadas por mulheres. Apesar disso, aproximadamente 70% do trabalho físico nessas fazendas é realizado por mulheres e meninas. Esses números mostram a importância de se discutir a equidade de gênero na produção do café.
Em muitos casos, as mulheres na produção de café são significativamente menos propensas a ter acesso à terra, tomada de decisões, finanças e conhecimento sobre café do que os homens. As barreiras socioeconômicas a esses recursos muitas vezes impedem as mulheres de se aprimorar profissionalmente, ampliando as disparidades já existentes entre os gêneros.
Como resultado dessas desigualdades, a produção média de café para fazendas operadas por mulheres pode ser até 25% menor do que aquelas de propriedade e operadas por homens. Sendo assim, cabe a pergunta: se houvesse melhora na equidade de gênero na produção de café, o volume produzido globalmente aumentaria?
Para saber mais, conversei com três profissionais que trabalham para melhorar a equidade de gênero no café.
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Questões de equidade de gênero na produção de café
Em 2017, um relatório do Fórum Econômico Mundial descobriu que a diferença global de gênero aumentou pela primeira vez em mais de uma década. O relatório também observou que de 192 países, 50 ainda não garantem direitos e oportunidades iguais para homens e mulheres.
Para entender a equidade de gênero, devemos primeiro trazer a igualdade de gênero para a equação. Qual é a diferença entre esses dois conceitos?
Jennifer Yeatts é Diretora de Café da Higher Grounds Trading Co., uma torrefação certificada pela B-Corp em Michigan, EUA. Segundo ela diz, “Igualdade significa que todos recebem o mesmo tratamento, as mesmas ferramentas e os mesmos recursos. Enquanto equidade significa que todos obtêm o que precisam pessoalmente para atingir o mesmo objetivo.”
Chris Treter, também diretor da Higher Grounds, acrescenta: “A equidade leva em conta a realidade que comunidades e indivíduos enfrentam, dependendo de suas circunstâncias e do contexto histórico em que nasceram. Cada indivíduo tem suas próprias necessidades e os desafios que enfrenta. Portanto, deve ter acesso a suporte personalizado para atender a essas questões.”
Levar em conta as desvantagens e preconceitos que mulheres e meninas enfrentam (e, assim, melhorar seu acesso a recursos e oportunidades) é uma parte essencial do fechamento da lacuna de equidade de gênero.
“No mundo em desenvolvimento, estamos vendo agora mais culturas e sociedades adotarem perspectivas que respeitam a diversidade e a inclusão de gênero”, diz Jennifer. “Embora isso seja ótimo, precisamos aplicar esses mesmos princípios nas comunidades produtoras de café.”
Chris me conta sobre alguns dos problemas que as mulheres enfrentam na produção de café. “Muitas vezes, as mulheres não têm acesso aos mesmos recursos que os homens, como terra, crédito e informação. Isso resulta em resultados negativos, incluindo menor produtividade e redução na renda dos agricultores”.
“Também há acesso reduzido aos meios de crescimento, que são cruciais para operar efetivamente além dessas comunidades também. Por exemplo, menor acesso à educação do que os homens leva ao analfabetismo, que por sua vez leva à falta de acesso a recursos financeiros.”
Por que alcançar a equidade de gênero no café é tão importante?
O último relatório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) afirma que, em 2021, o consumo global de café cresceu 1,5 milhão de sacas, enquanto a produção global caiu 8,5 milhões de sacas.
Se essa tendência continuar por um período longo o suficiente, poderá causar um problema de fornecimento global. No entanto, diminuir a diferença de gênero no café pode ajudar a aumentar a produção em até 30 milhões de xícaras extras de café por ano, segundo algumas fontes.
“Se pudermos permitir que mais agricultores atinjam suas metas de colheita, fornecendo uma variedade de ferramentas para diferentes indivíduos e suas circunstâncias, mais café será produzido e com maior qualidade”, explica Jennifer.
“Além disso, o respeito crescerá em toda a cadeia de suprimentos e nos ajudará a construir relacionamentos de longo prazo baseados em confiança e valores compartilhados.”
Em consonância com isso, pesquisas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação observam que melhorar a equidade de gênero na agricultura global pode aumentar o rendimento das colheitas em até 30%, inclusive para o café.
No entanto, para abordar de forma abrangente as questões de equidade de gênero no café, devemos primeiro analisar os desafios que mulheres e meninas enfrentam com frequência. “Muitas mulheres na produção de café correm um risco maior de sofrer violência de gênero e falta de acesso à saúde sexual e reprodutiva”, explica Chris. “Além disso, milhões de meninas em todo o mundo sequer terminam a escola.”
Na Etiópia, por exemplo, estima-se que apenas 25% das meninas frequentem o ensino fundamental. A falta de acesso à educação significa menos oportunidades para melhorar seus meios de subsistência. Por sua vez, pesquisas indicam que quando as mulheres não conseguem aumentar sua renda ou se envolver mais nas tomadas de decisões financeiras, toda a família sofre.
Focando na República Democrática do Congo
Embora existam oportunidades para melhorar a equidade de gênero nana produção do café em todo o mundo, Chris explica que a Higher Grounds colocou seu foco em países da África Oriental.
“Identificamos estrategicamente as regiões orientais da República Democrática do Congo (RDC) como um dos locais onde se necessita de ajuda e apoio com mais urgência”, diz ele. “O país ficou em 163º lugar entre 170 países no Índice de Mulheres, Paz e Segurança de 2021.”
Desde que se tornou independente da Bélgica em 1960, o país experimentou conflitos contínuos, instabilidade política e agitação civil. “No leste do Congo, há pelo menos 120 grupos militantes diferentes baseados em três províncias, onde todo o café especial do país é produzido”, explica Chris.
“Um desses grupos está atualmente realizando massacres contínuos em comunidades onde vivem nossos parceiros agricultores da cooperativa Kawa Kanzururu”, acrescenta. “Na verdade, um maquinário de lavagem foi recentemente fechado e sua sede foi transferida por causa da ameaça contínua de violência.”
Herman Lwango é o Coordenador do Programa da organização sem fins lucrativos parceira da Higher Grounds, On The Ground, na RDC. Ele explica como as mulheres e meninas são mais vulneráveis no país.
“A RDC está agora entre os países mais pobres do mundo”, diz ele. “As Nações Unidas relatam que o país tem a maior incidência de estupro do mundo. Existe uma norma cultural de ‘dote’ na qual as mulheres são consideradas itens compráveis”.
Mais de 56% das mulheres e meninas com idades entre 18 e 49 anos na RDC relataram experiências de violência sexual. “De acordo com as normas culturais históricas da RDC, os homens geralmente se consideram superiores às mulheres”, diz Herman. “Isso leva à subordinação das mulheres no lar, o que também é uma forma de violência de gênero.
“Além disso, a falta generalizada de educação sexual e informações sobre planejamento familiar significa que muitas mulheres e meninas dão à luz ainda muito jovens e estão mais expostas a doenças sexualmente transmissíveis.”
Apoiando programas de equidade de gênero na produção do café
Em 2015, uma pesquisa da Specialty Coffee Association descobriu que havia uma lacuna econômica significativa entre homens e mulheres no setor cafeeiro da África Oriental. Em média, os homens pesquisados ganharam mais de US$ 700 na colheita do café, enquanto as mulheres ganharam menos de US$ 450.
Para preencher essa lacuna, Herman enfatiza que é imperativo incluir mulheres em um número maior de cargos de liderança.
“Tanto as mulheres quanto os homens precisam ser informados sobre a importância de incluir as mulheres nos processos de tomada de decisão”, diz ele. “Para que isso aconteça, as meninas devem ter melhor acesso à educação, para que possam estudar e acabar tendo as mesmas oportunidades que os homens.”
Chris me conta mais sobre o trabalho que a Higher Grounds e On The Ground estão fazendo na RDC para aumentar o acesso à educação das mulheres no café. “Tanto o Higher Grounds quanto o On The Ground apoiam treinamento e aulas para mulheres agricultoras. Somos ainda co-fundadores da Saveur du Kivu – uma conferência anual da cadeia de suprimentos e competição de degustação de especialidades.”
Chris explica que Saveur du Kivu foi lançado logo depois da Run Across Congo, organizada pela On the Ground. Esta iniciativa de angariação de fundos teve nove mulheres (cinco representando empresas de café) correrendo sete maratonas em sete dias em toda a área de cultivo de cafés especiais da RDC.
O objetvo da ação era arrecadar dinheiro e conscientizar sobre iniciativas de equidade de gênero.Ele acrescenta que este evento foi um trampolim para o trabalho mais amplo do Gender Action Learning System (GALS) do On The Ground.
Herman acrescenta que incluir mulheres em cargos de liderança nas cooperativas também pode ajudar a melhorar a qualidade do café – o que pode levar a preços mais altos. “Na On The Ground, implementamos um programa de equidade de gênero com a Cooperativa de Café Muungano”, diz ele. “Temos 125 mulheres no Grupo de Empoderamento Feminino.”
Ele me conta mais sobre como o programa On The Ground é realizado nas comunidades locais. “O Gender Action Learning System (GALS) é um programa de treinamento implementado em diferentes regiões produtoras de café. Muungano agora se reúne duas vezes por mês e inclui homens e mulheres nas reuniões”.
“O programa GALS ajudou a implementar um mecanismo de poupança e crédito em grupo, bem como a melhorar as habilidades de alfabetização para mulheres e meninas locais. Também ajudou a aumentar a conscientização sobre a diminuição da violência, promoveu associações mais positivas sobre a masculinidade e ajudou a desenvolver novas leis em torno da violência sexual”.
Apoiar essas mudanças culturais em direção a atitudes mais inclusivas de gênero ajuda as mulheres a obter mais independência financeira e social, além de passar a serem vistas como iguais aos seus colegas de trabalho do sexo masculino. “De acordo com os membros da cooperativa, este programa ajudou muito mais mulheres a participar dos processos de tomada de decisão”, diz Herman.
A equidade de gênero no café pode beneficiar toda a cadeia
Acredita-se que em todo o mundo, as mulheres lideram algo entre 5% e 30% de todas as famílias produtoras de café. Isso significa que, quando o acesso à educação cafeeira e aos recursos agrícolas melhora para essas agricultoras, a qualidade e a produtividade do café aumentam, o que significa mais café de alta qualidade no mercado.
Jennifer me conta sobre alguns dos cafés que a Higher Grounds oferece para apoiar projetos de equidade de gênero. “o blend especial de primavera Awaken apoia o Projeto Congo da OTG e sua programação de igualdade de gênero e alfabetização”, diz ela. “Mas além de On the Ground, também adoramos apresentar microlotes de mulheres agricultoras nas cooperativas de produtores que compramos em outros países.”
“Por exemplo, a cooperativa COMSA em Honduras tem um ótimo programa para cultivar lotes especialmente processados e apoiar os membros a encontrar compradores para eles”, acrescenta ela. “Atualmente, temos três microlotes das mulheres do COMSA: Miriam Perez, Irma Garcia e a recém-reconhecida vencedora do Good Food Award Karla Portillo.”
Com o interesse do consumidor em café sustentável e de origem ética continuando a crescer, o fornecimento de café que apoie a igualdade de gênero em todo o mundo nunca foi tão importante.
“Ao apoiar o desenvolvimento do papel das mulheres na produção de café, vimos melhorias nos meios de subsistência e benefícios mais amplos no bem-estar individual das famílias”, explica Chris. “Além disso, ao aumentar o acesso à educação na produção de café, também podemos fortalecer a resiliência climática, além de aumentar a produtividade agrícola.”
Jennifer conclui observando como é importante reconhecer as experiências e necessidades únicas de mulheres e meninas na produção implementar projetos de equidade de gênero no café.
“Esses programas devem sempre ter em mente o vasto leque de indivíduos e suas diversas necessidades – em todos os gêneros – para apresentar soluções que possam ser adaptadas para cada indivíduo.”
Apesar dos inúmeros desafios que as mulheres enfrentam, estamos vendo progresso em direção à equidade de gênero na produção do café.
Com o tempo, com maior acessibilidade à educação e mulheres tendo mais informações sobre como as fazendas de café são operadas, é provável que também veremos a qualidade e a produtividade das fazendas aumentarem – significando café melhor para mais pessoas em todo o mundo.
Gostou? Então leia nosso artigo sobre iniciativas sociais em comunidades produtoras de café.
Créditos das fotos: Herman Lwango, Diana Zeyneb Alhindawi, Higher Grounds Trading Co.
Observação: a Higher Grounds Trading é patrocinadora do Perfect Daily Grind.
Tradução: Daniela Melfi.
PDG Brasil
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