13 de maio de 2021

Guia da fermentação: primeiros passos para fermentar café especial

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Cafés fermentados parecem ter chegado para ficar no mercado de especialidade. Ao longo dos últimos anos, eles aparecem com mais frequência no portfólio de torrefações e cafeterias que buscam destaque no setor.

Anaeróbica, selvagem, maceração carbônica, com bombonas, em tanques ou montes – ou até em cavernas: são muitas as abordagens possíveis para a fermentação do café. E é justamente a diversificação da oferta de cafés, com a chance de desenvolver perfis exóticos e exclusivos, que têm tornado o processo cada vez mais atraente para o produtor. 

Começar a fermentar cafés pode ser algo mais acessível do que se imagina, mas, independentemente do método, esse será sempre um processo complexo e que envolve muitas variáveis. 

Para saber mais sobre as vantagens da fermentação de cafés especiais, os primeiros passos e os riscos envolvidos, o PDG Brasil conversou com profissionais e cafeicultores experientes no assunto. 

Você também pode gostar de ler o artigo Como garantir consistência na fermentação e no processamento de café.

fermentação de café especial

Café cereja descascado passa por desmucilagem em tanques de fermentação. Depois, o café será lavado com água antes da secagem, num processo chamado lavado ou fully washed. Crédito: acervo pessoal Mariano Martins, Martins Café 

POR QUE APLICAR PROCESSOS DE FERMENTAÇÃO NO CAFÉ?

A fermentação é um processo químico em que o açúcar é quebrado por leveduras, bactérias e fungos filamentosos presentes no ambiente. “No café, ela consegue converter a mucilagem da polpa em ácidos e compostos aromáticos – com uma parte deles sendo absorvida pela semente”, explica Mariano Martins, cafeicultor do Martins Café, em São Manuel (SP). 

Quando se fala em “cafés fermentados”, a ideia é fazer um processo controlado, com objetivo de direcionar o sabor final a perfis mais diferenciados e complexos em comparação ao feito em métodos mais tradicionais de via seca e via úmida.

“A fermentação é uma prática extraordinária para a mudança de perfil sensorial de qualquer produto.”, explica João Batista Pavesi, doutor em agronomia e professor do Campus de Alegre do IFES, Instituto Federal do Espírito Santo.

Com isso, o produtor pode pedir valores maiores por seu café e aumentar a rentabilidade, ainda que o processo lhe traga custos adicionais. Lucimar Silva, gerente agrícola do Guima Café, afirma que cafés com fermentação de qualidade podem ser um bom cartão de visitas. “Se eu conseguir chamar a atenção para um café, [o comprador] vai querer conhecer os outros”.

Mas, segundo explica Joaquim Inácio Sertório Neto, técnico em cafeicultura do SENAR-MG, a fermentação não “faz milagre” e nem substitui um pós-colheita bem executado. “A fermentação não é processamento para salvar a lavoura. Ela não vai fazer o produtor pular de 70 pra 90 pontos. Ele pode melhorar seu café com pequenas mudanças no pós-colheita”, alerta.

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Cafés fermentam em bombonas de 1.000 litros (esquerda) e 200 litros (direita), na Fazenda São Lourenço, em Varjão de Minas (MG). Crédito: Lucimar Silva, Guima Café

Antes de começar os testes 

Os especialistas com quem o PDG Brasil conversou foram unânimes no primeiro passo que o produtor deve tomar se deseja implementar processos de fermentação na fazenda: buscar conhecimento. 

Com foco em retorno rápido, muitos produtores começam a fermentar quantidades maiores de café, sem ter uma compreensão do processo como um todo. Mas, antes da prática, eles devem estudar e entender como a fermentação acontece e como interfere na qualidade e perfil do café, quais são os pontos de risco e as práticas de segurança. “É estudar, visitar locais, checar. Mas todo produtor que vai começar a fermentar café também deve se ater a uma escala menor de produção. Cada lugar é um lugar, cada sistema é um sistema.”, aconselha o professor Pavesi.

Ganham destaque as formações de institutos de pesquisa e de apoio ao produtor rural, inclusive online. Mas, além de cursos, o intercâmbio entre cafeicultores ajuda bastante, acredita Lucimar. “A troca de experiência com outros produtores foi essencial para mim e está acima de qualquer curso. Você vai aprender o que deu certo, o que não deu. O curso te dá a base, mas é a prática que te ensina.”

Também é importante que os cafeicultores conheçam bem sua propriedade e o potencial de cada talhão, para saber o seu ponto de partida. Assim, é mais fácil entender aonde se quer chegar com a fermentação e como ela pode te ajudar a se posicionar melhor no mercado. 

Saber provar o próprio café é um recurso que empodera o produtor e ajuda nesse mapeamento, como explica Lucimar. “Veja o potencial das genéticas que você tem dentro da fazenda. E depois dos seus pequenos testes, prove você mesmo, não fique apenas dependendo de laudos. Você precisa conhecer o que está fazendo e ter essa percepção do resultado.”

Fermentar café também envolve planejamento e um olhar atento ao lado de fora da porteira, para a comercialização do produto. O mercado está aquecido e pede inovação nos perfis e processos, mas é preciso combinar a sua oferta e saber para quem vender esse café. 

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Frutos da variedade IAC 125 RN são retirados das bombonas após 120 horas de fermentação anaeróbica na Fazenda São Lourenço, em Varjão de Minas (MG). Crédito: Lucimar Silva

Atenção à matéria-prima

Quando se fala de um café de alta qualidade, ter uma boa matéria prima é essencial. No caso da fermentação, o fruto e a semente precisam estar em boas condições para que a reação química ocorra de maneira favorável, sem a interferência de agentes danosos.

É preciso ter em mente que o café é um alimento e, por isso, tem que receber cuidados visando a segurança alimentar desde o início, ainda no cultivo, como ressalta Pavesi. “A matéria-prima é de extrema importância: a sua preservação, sua integridade, a não-existência de materiais estranhos, nem a presença de microrganismos que são deletérios. Tem que ser matéria-prima nobre”. 

Ele reforça que a higiene e a segurança alimentar são pontos cruciais durante todo o processo. O café deve estar sem sujeiras e sua colheita ter sido feita sem contato com o solo, que pode contaminar o fruto. O cultivo e o manejo devem ser feitos com limpeza e rastreamento.

Assim como a fermentação pode converter o açúcar em compostos aromáticos positivos, o manuseio do café em ambientes sujos pode trazer microrganismos que atacam a fruta e geram substâncias tóxicas. Joaquim Neto alerta: “99% das leveduras são benéficas, mas o 1% maléfico é mais forte”. 

Mariano conta um exemplo emblemático de como a armadilha da sujeira pode passar despercebida no dia a dia da fazenda. Ele cita um cliente que o procurou alegando que o café que ele fermentava estava com uma nota desagradável. 

“Analisando o processo, percebi que no turno da manhã quem começava o processo nos tanques de fermentação era o mesmo funcionário que fazia a ordenha das vacas da fazenda, e ele chegava no local dos tanques com uma bota cheia de sujeira e que andou no curral. Ela estava trazendo fungos tóxicos para a fermentação do café”, explica.

A maturação da cereja do café também requer cuidado. O fruto precisa estar em seu ponto ideal, para que tenha muito açúcar disponível na polpa. Frutos verdes e imaturos não alimentarão suficientemente os microrganismos. Joaquim acrescenta que frutos em estágio passa também devem ser evitados, porque, quando começam a secar, a seiva deixa de circular nos frutos, e microrganismos atacam a cereja, gerando uma fermentação ainda na planta.

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Terreiro exclusivo para secagem dos experimentos de novos parâmetros de fermentação do Martins Café na Fazenda Santa Margarida, em São Manuel (SP). A secagem desta forma visa garantir uma rápida interrupção do processo fermentativo quando o café cai no terreiro. Crédito: acervo pessoal Mariano Martins 

Equipamentos e estrutura – primeiros testes

Segundo os especialistas, todo cafeicultor, do pequeno ao dono de grandes propriedades, pode implementar a fermentação com sucesso, seja adaptando a estrutura que tem ou investindo mais se puder, sem necessariamente ter que adquirir muitos equipamentos. O produtor pode – e deve – começar aos poucos, com lotes pequenos, para aprender sobre o processo de maneira mais aprofundada.

E até produtores mais experientes em fermentação, como Mariano, seguem essa máxima. “Por aqui, sempre que queremos testar um novo parâmetro utilizamos garrafas de água vazias de 5 litros: isso gera o café suficiente para se conseguir fazer mais de duas torras, pois precisamos provar o que fizemos, e se der errado, perdemos pouco café, reduz o prejuízo.”

Um importante aliado do produtor no início da fermentação é a noção que ele tem da própria lavoura. Ele deve conhecer os pontos de sua propriedade em que há menos riscos para o café como doenças, estresse hídrico e vento, e escolher esses cafés para os testes. Para cada café fermentado, uma amostra não-fermentada deve ser acompanhada em paralelo.

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Mariano Martins analisa grãos no tanque de fermentação após terem sido descascados na Fazenda Santa Margarida. Crédito: acervo pessoal Mariano Martins, Martins Café 

Joaquim Neto sugere: “[Você precisa] separar os melhores frutos e começar o processo sem nada. Coloca num balde, deixa fechadinho com cinco repetições, vai até 96 horas, deixa secar e mais nada. Tudo marcado, com números. Secou? Leva para um profissional provar, sempre deixando a referência do mesmo café. Deu certo? Aí você investe em tanques maiores, air locks etc.”

Outro aliado que contribui muito para primeiros testes com resultados claros é um registro cuidadoso de cada etapa do processo. É importante que o produtor tome nota de tudo que ele consiga controlar. São marcadores como o pH, temperatura do café e no ambiente, tempo, volume de líquido. “Tudo tem de ser anotado para você poder replicar. Aquilo que deu certo uma vez tem possibilidade de dar certo novamente.”, afirma Lucimar.

A estrutura não precisa ser grande. Termômetros e medidores de pH são equipamentos básicos de controle necessários, mas que podem ser de modelos mais simples. Baldes e outros recipientes existentes na fazenda podem ser utilizados. Também é possível fazer adaptações, como galões e caixas d’água bem fechados e o uso de pequenas mangueiras em garrafas pet, um airlock caseiro.

“Se o produtor já tem instalada a via úmida, ele pode testar o café honey, que é só descascado, não desmucilado. Ele sai com a mucilagem, e acondiciona esse café em biorreatores (recipientes) de pequeno porte. Eu cito aí baldes de 20 litros e bombonas de 120 a 300 litros.”, descreve o professor Pavesi. Se o produtor tiver apenas a via seca, é necessário retirar os frutos boia e verdes num terreiro suspenso. 

O professor Pavesi sugere um exemplo de teste de fermentação: “Eu acredito que o método deva ser anaeróbico em pequenos recipientes ou biorreatores, com a microbiota nativa e em tempos que começam a partir de 16 horas.”. 

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Exemplo de fermentação em silo: o oxigênio é retirado do sistema ao se envelopar o café com uma lona, sem água, na Fazenda São Lourenço. Crédito: Lucimar Silva

Redução de riscos

Aqui, novamente o conhecimento surge como aliado para se evitar problemas durante a fermentação que resultem em cafés com defeitos e até elementos tóxicos.

Mariano Martins é enfático: “A fermentação é um trabalho que requer – para ser bem feita – a compreensão de uma infinitude de variáveis, muitas vezes específicas de um determinado talhão.”

“Tem que haver o conhecimento de todos estes aspectos: volume, temperatura, pH, presença ou ausência ou presença ligeira de oxigênio, e dos inóculos ou da microbiota presente.”, detalha o professor Pavesi. 

Os diversos aspectos envolvidos na fermentação devem ser contextualizados com a localidade e características do terroir. Os resultados variam de região para região, porque cada local tem condições de clima e microbiotas diferentes. Mesmo dentro de uma mesma fazenda, a população de microrganismos muda.

O monitoramento constante das variáveis e uma boa base teórica, com estudo próprio ou auxílio especializado, é primordial para evitar riscos de fermentações indesejadas. Joaquim Neto afirma que se tornou comum cafés passarem por superfermentações, quando o processo ocorre de maneira descontrolada a ponto de “matar” o café, ou seja, quando a semente não chega mais viva na hora da torra.

“Muitos processos têm consumido a semente ao ponto de levar à morte embrionária. Num processo mais forçado, essas leveduras começam a trazer outros processos fermentativos, outras vias metabólicas, excretar enzimas para que ocorram a quebra.”, explica.

Por isso, segundo Mariano Martins, uma regra importante para a redução de riscos é garantir que a fermentação ocorra na polpa, e não na semente. Se todo o açúcar da polpa for consumido, os microrganismos buscam alimento na semente. Ele explica que, para se proteger, “a semente ainda viva começa a sintetizar compostos tóxicos, e isso gera cafés de gosto medicinal, repugnante, mas aromas maravilhosos, que são característica de muitos cafés ditos ‘fermentados’ que vemos por aí”. 

Se a fermentação foi bem-feita, o processo deve seguir assim na secagem, beneficiamento e armazenamento, para garantir qualidade até a torra. “Se algum desses processos falhar, é como se fosse uma engrenagem, e todo o trabalho da fermentação pode ser perdido”, diz Lucimar.

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Teste de fermentação de café em bombona, submerso em água. Ele recebe gelo como uma forma de controlar a temperatura da fermentação. Crédito: Lucimar Silva

O produtor deve sempre buscar orientação de profissionais como agrônomos e microbiologistas para melhor acompanhar a fermentação. “Temos diversas instituições de ensino e pesquisa e várias empresas que têm profissional habilitado pra fazer esse tipo de serviço.”, enfatiza o professor Pavesi. 

Joaquim Neto complementa, falando da importância que os treinamentos têm para que o produtor se desenvolva. “Ele vai entender os defeitos, começar a interagir com o produto dele. O produtor gosta de produzir, mas não tinha acesso a saber o que está produzindo.”, diz.

A fermentação se fortalece como boa opção de processamento para incrementar o portfólio de perfis oferecidos por produtores e aumentar sua renda, e se alinha a uma forte tendência de busca por sensoriais diferenciados no mercado. 

Mas combinar oferta e demanda exige que o cafeicultor busque conhecimento específico e faça o dever de casa antes mesmo dos primeiros testes. Tudo começa ainda na matéria-prima, que deve ser de boa qualidade, e segue na atenção às boas práticas, à segurança alimentar, rastreabilidade e muita observação ao longo de todo o processo, para se desenvolver um portfólio de cafés fermentados de qualidade

Crédito das fotos: Lucimar Silva, Acervo Mariano Martins

PDG Brasil

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