22 de fevereiro de 2022

Qual é a relação das leveduras com a fermentação?

Compartilhar:

“A fermentação é uma técnica muito poderosa, tanto para o bem como para o mal. E até bem pouco tempo, o mercado de café considerava que café fermentado tinha qualidade inferior, gerado por descuido e descaso do produtor.” Essa é a visão de Mariano Martins de Almeida, Mestre de Torra do Martins Café e cafeicultor na Fazenda Santa Margarida, que fica em São Manuel (SP), um dos precursores em estudos de cafés fermentados no Brasil.

Esse preconceito tem muitas razões para existir, ao passo que vem se tornando um pensamento ultrapassado, considerando todos os estudos e avanços técnicos em diferentes fazendas pelo Brasil, que já nos provaram que existe riqueza sensorial nos cafés fermentados. 

Com a fama e a popularização da técnica, no entanto, vêm junto alguns riscos, que precisam ser considerados. 

Então vem junto com o PDG Brasil para entender melhor o ônus e o bônus desse universo rico e maravilhoso das leveduras para fermentar café.

Você também pode gostar de Como garantir consistência na fermentação e processamento do café.

levedura nativa café

O que são, como nascem e se multiplicam as leveduras?

Segundo Carolina Pardo Barreto, que é coordenadora de treinamento, operação e experiência de consumo a nível nacional pela 3corações: “leveduras são tipos de fungos cujos esporos estão presentes no ar, frutas, flores, solo, etc. Quando encontram uma condição ideal, rica em umidade e açúcar, começam a se alimentar e multiplicar.”

“Essa alimentação das leveduras é o que gera o processo de fermentação, quebrando as cadeias complexas em mais simples, como a do açúcar. Como resultado, temos a formação de calor, gás carbônico e álcool (o que levou o homem a explorar as leveduras, tanto no preparo de alimentos como o pão, como bebidas como vinho e cerveja).”

“No café, a fermentação das leveduras causa processos metabólicos que convertem açúcares e ácidos orgânicos em diferentes sabores e aromas. Pode ser conduzido de forma aeróbica (quando ocorre na presença de oxigênio do ar) ou anaeróbica (quando ocorre na ausência de oxigênio). O objetivo é que a mucilagem seja retirada sem que ocorram fermentações indesejáveis e que impactam negativamente o sabor.”

No Martins Café, Mariano é o cara das ideias e da visão, mas quem aterra e garante a entrega de tudo é sua sócia, Fabiola Filinto. Ela é ex-consultora de estratégia (McKinsey), ex-consultora de processos (Accenture) e MBA pela Harvard Business School

Fundadora do Martins Café, junto com o Mariano, é a head atual da operação e também da startup de biotech/agtech que montaram juntos em 2021 (Filinto & Martins Agtech) para acelerar o trabalho de seleção e isolamento de leveduras e bactérias que tragam benefícios à qualidade, permitindo a modulação sensorial do café via fermentação.

Juntos, eles prestam consultoria sobre o assunto e existe muito interesse da parte de Mariano em trabalhar com diferentes regiões e produtores, a fim de ampliar seu know-how das mais variadas leveduras, bactérias, fungos e bolores presentes na microbiota do café brasileiro.

Para ele, a fermentação é um processo simples: “quando as leveduras comem o açúcar da mucilagem no grão, devolvem para o substrato compostos variados como álcoois, gorduras, ésteres e cetonas e gás carbônico.”

“A ação das leveduras que resulta na fermentação do café é mais complicada pelo fato de não pasteurizarmos os grãos no processo, ou seja, fazemos uma fermentação utilizando microbiota selvagem e não uma levedura apenas, como nos processos mais ‘refinados’ dos vinhos ou cerveja.”

levedura nativa café

Leveduras selvagens (nativas) e leveduras exógenas (selecionadas) 

As leveduras selvagens são aquelas presentes no próprio terroir e que possuem uma microbiota nativa. Por isso, não necessariamente é possível controlá-las ou determinar os sabores que serão desenvolvidos durante sua fermentação.

Também existem as leveduras selecionadas em laboratório (conhecidas como exógenas ou “de pacotinho”), que apresentam características específicas já determinadas no momento de sua seleção, possibilitando um pouco mais de controle das características desenvolvidas. Em contraponto, elas são mais caras e possuem pouca competitividade contra as leveduras nativas.

“No café, não pasteurizamos o mosto fermentativo antes de inocular as leveduras (mosto que, para nós no Martins, é a mistura de café com mucilagem). Mesmo que joguemos leveduras ‘de pacotinho’, vai ter no mosto um gigantesco número de diferentes espécies de leveduras, fungos e bactérias participando do processo.”

“Tudo vai depender da dose de leveduras inoculadas e seu fator de competitividade: se você jogar uma quantidade gigantesca de leveduras no mosto, e elas forem bastante competitivas frente às leveduras nativas, você vai conseguir achatar bastante as características do terroir de origem.” 

Mas ele entende que talvez não seja isso que os produtores de fato buscam: “seria o jeito de conseguir mais ‘uniformidade’ nos lotes, mas essa lógica tem um ponto de fragilidade: a quantidade de leveduras ‘de pacotinho’ que você precisa inocular para garantir competitividade frente às leveduras nativas é muito alta.” 

“Isso acaba tornando o processo muito caro para o produtor, que muitas vezes não consegue compensar com o ágio obtido pelo lote o custo super alto que ele teve com a compra das leveduras de pacotinho.”

No Martins, por exemplo, o objetivo é isolar essas leveduras “vira-latas” interessantes para potencializar o sensorial trazido por elas mesmas. Mariano ilustra esse fato com uma levedura nativa deles que traz uma nota carinhosamente apelidada de “Guaranóia” (um aroma que lembra o cheiro tutti-fruti do Guaraná Antártica).

“Ela é nativa de nosso terroir, ocorrendo naturalmente. Já tentamos inocular ela em produtores parceiros da região da Mogiana, mas não tivemos sucesso: ela consegue ser competitiva apenas em nosso próprio terroir, performando mal em terroirs diferentes e com varietais que não tenham a mesma proporção de açúcares redutores disponíveis.” 

café fermentado

A importância do controle

Carol reforça que, para uma fermentação trazer características de qualidade, ela deve ser monitorada e controlada (tempo, temperatura, higiene etc.). Já na fermentação descontrolada, os microrganismos, leveduras e condições do processo possivelmente trarão características negativas para a bebida.

“A fermentação ruim e indesejada ocorre pela ação de microrganismos saprófitas, que consomem água e açúcar do grão, gerando frutos ardidos, com sabor amargo, adstringente e acidez acética (vinagre).”

Esclarecendo que existe uma variabilidade gigantesca do conjunto de leveduras nativas presentes no processo, comenta Mariano, e que variam de talhão para talhão, produtor para produtor, época de colheita etc.

“Nosso trabalho é, no processo de fermentação, ir ajustando os parâmetros de modo a privilegiar as leveduras que trazem os atributos positivos, enquanto minimizamos as leveduras que realizam ciclos e processos não úteis à modulação sensorial do café.”

Leveduras mais comuns e utilizadas em processos de fermentação de café

Mariano conta para o PDG Brasil que a Dra. Sara Maria Chalfoun e sua equipe da UFLA têm desenvolvido a levedura Cladosporium cladosporioides, que atua como excelente bioprotetor, impedindo/reduzindo o impacto sensorial de fermentações indesejáveis. 

Outros pesquisadores têm tido alguns resultados excitantes com leveduras da ordem dos “Saccharomycetales”. 

“O principal desafio é, que ao contrário de bebidas como a cerveja e o vinho, onde você está fermentando um mosto não vivo, no café você possui a semente inserida no meio fermentativo. Assim, você não consegue pasteurizar o mosto (para matar toda a microbiota existente) a fim de conseguir inocular uma única levedura.”

“No café, temos processos fermentativos mais similares ao método original de produção da cerveja IPA, com várias leveduras e bactérias atuando ao mesmo tempo, gerando um sensorial muito mais complexo e às vezes até mesmo com um leve off-flavor (que nada mais é do que aquela nota ou atributo sensorial que não deveria estar lá, trazendo atributos não positivos / não desejáveis para a bebida), como nas IPAs old-school de leveduras selvagens.”

Além disso, Mariano reforça que a mucilagem do café precisa ser removida para permitir a secagem rápida do café após a fermentação e ação das leveduras. E para isso é muito importante que se mantenha vivos na microbiota fermentativa elementos (leveduras e bactérias) que produzam enzimas pectolíticas,  indispensáveis para essa degradação. 

leveduras fermentação

Leveduras e processos que resultam em fermentação negativa

“À medida em que mais produtores começam a usar leveduras e fermentar sem o uso técnicas seguras, o resultado pode vir tanto para o bem quanto para o mal”, comenta Mariano justificando que muito da pesquisa acadêmica sobre qualidade de café realizada no século passado visava evitar o uso de leveduras e o processo de fermentação a qualquer custo, pelo mau uso dessa técnica e seus reflexos na bebida.

“Esse preconceito contra as leveduras e a fermentação não existe à toa, pois existem sim resultados negativos de fermentações (como a fermentação butírica e a propiônica) que geram notas desagradáveis na bebida (amargor de remédio prolongado no retrogosto), e também estão associadas à produção de compostos carcinogênicos, como a Ocratoxina (que também traz amargor ao paladar).”

Existe inclusive uma regulamentação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a RESOLUÇÃO Nº 7, DE 18 DE FEVEREIRO DE 2011, que estabelece o limite máximo da Ocratoxina permitido no café torrado: 10 PPB (partes por bilhão). Acima disso é considerado impróprio para consumo.

“A maioria dessas ‘fermentações do mal’ estão relacionadas não aos processos fermentativos, mas sim a problemas de controle no uso das leveduras e a secagem do café após a fermentação (como café ‘seco à sombra’ ou ‘seco em terreiro suspenso’ sem atenção devida, podendo ser mais arriscado), ou pela extensão da fermentação por tempos excessivamente longos, ou contaminações.”

“Percebemos que cafés secos à sombra tendem a ter maior risco de altos teores de Ocratoxina, especialmente se secos durante períodos úmidos. Em linhas gerais, sempre que o produtor encontrar bolor (os ‘fungos do mal’) em seus grãos durante a secagem, há forte indicativo de problemas.”

como fermentar café

Secagem lenta x fermentação

Seguindo o fio sobre os café secos à sombra, é bastante comum produtores confundirem secagem com fermentação. E citando a máxima do futebol trazida por Mariano: “uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”. Mas como assim? 

Ele nos explica que existem na literatura acadêmica, evidências de que uma seca lenta ajuda a preservar a integridade celular da semente do café, garantindo assim um maior tempo de prateleira/validade do mesmo. Ao contrário de uma seca muito rápida, que gera desorganização celular e rancificação das gorduras (que vazam as células e são oxidadas pelo oxigênio, como gordura rançosa).

Muito produtor pegou essa ideia e levou até seu limite, muitas vezes secando o café à sombra e deixando que a semente seja livremente colonizada por mofos e bolores (questão bastante arriscada, estando muito associada a toxinas e off-flavors). 

“Para nós, no Martins, é imprescindível que, uma vez finalizado o processo de fermentação, o café rapidamente vá para o terreiro, em leiras bastante finas, para o que chamamos de ‘banho de sol’ e ‘pegar uma corzinha nesse inverno’.”

“Nesse momento, os raios UV do sol são extremamente importantes, causando danos no DNA dos bolores, mofos, fungos, bactérias e leveduras, e praticamente ‘zerando’ a microbiota aderida na semente, garantindo assim uma secagem segura, com a interrupção apropriada da fermentação.”

Por isso, ele diz que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa: quem tenta fermentar e secar ao mesmo tempo tem grandes chances de não estar fazendo direito nenhuma das duas coisas.

fermentação de café

Consistência e qualidade das leveduras na fermentação

Existem técnicas de fermentação que são muito mais tolerantes a variações de parâmetros, gerando consistentemente, ano a ano, lote a lote, cafés de sensorial semelhantes. Mariano cita, por exemplo, a técnica de produção dos cafés lavados (fully washed), nos tanques de fermentação.

“Esse método consegue amaciar bastante a bebida, trazendo uma estrutura de boca aveludada, além de proteger o lote contra fermentações indesejáveis no terreiro.”

Para Carol, essa consistência está ligada à repetibilidade dos processos: “é necessário acompanhar e aferir todos os passos e protocolos realizados.” Ela explica que “a qualidade começa no grão, para que as leveduras potencializem as características ali presentes” e que é essencial a higiene de utensílios e equipamentos, evitando a presença de microrganismos indesejados.”

“Sobre a escolha da levedura (selvagem ou selecionada): caso opte pelas selecionadas, o produtor terá mais controle e maiores chances de repetir o café na próxima safra. É muito importante controlar o tempo, a temperatura e o ph: oscilações de temperatura têm impacto direto na resposta das leveduras à fermentação, e sabemos que quanto mais alta a temperatura, maior a taxa de fermentação (fermentação mais rápida).”

Ela recomenda que o produtor anote todas as informações referentes ao comportamento das leveduras, a fermentação, as oscilações de temperatura, para entender pontos positivos e negativos, garantindo a repetibilidade na próxima safra.

fermentação fazenda café

Dicas para uso de leveduras e fermentação do café

Não existindo uma receita genérica e universal, mas pensando em dicas gerais para o produtor interessado em desbravar esses processos, seguem dicas preciosas de nossos entrevistados:

  • Não confunda o momento da fermentação com o da secagem;

“A fermentação deve ocorrer sem oxigênio, sem pressa e protegida da radiação solar, enquanto a seca deve ocorrer rápido e na presença de radiação solar. Misturar os dois processos pode gerar bebidas muito aromáticas, mas trazer grandes problemas e toxinas para a bebida”, comenta Mariano.

  • Fuja de quem promete resultados excepcionais e imediatos: esse é um processo longo, que deve ser adaptado com cuidado específico para cada fazenda, lote, varietal e microterroir;
  • É possível e recomendado que os produtores comecem a conversar mais com biólogos e microbiologistas, para entender e fazer seu próprio “misturado de leveduras”;
  • A fermentação pode ser muito benéfica para alguns produtores, mas envolve investimento, alto controle durante todo o processo, e muito estudo e capacitação;
  • Considere todos os pontos e necessidades específicas de sua produção antes de iniciar um novo processo, seja ele qual for;
  • Conheça o máximo possível sobre as leveduras e todo o processo fermentativo, faça um levantamento do investimento necessário versus o retorno, converse com outros produtores de sua região que já trabalham com leveduras e fermentação, e escolha o método que irá utilizar (aeróbico ou anaeróbico);
  • Inicie os testes do processo com um lote experimental e pequeno, e vá aumentando conforme estiver mais seguro e hábil. Encontre especialistas que possam prestar consultoria e determinar a viabilidade da fermentação para seu caso em específico;
  • De maneira informal, você também pode realizar pesquisas pela internet, uma boa base com informações relevantes e muitos depoimentos (principalmente de produtores estrangeiros, de países onde o processo já é mais bem desenvolvido e conhecido).
leveduras nativas

A verdade é que as leveduras e todo o processo de fermentação de cafés especiais ainda é um lugar por muitos não explorado. Há muito ainda para ser estudado, testado e compreendido, pois seja pelo lado positivo ou pelo negativo, proposital ou descontrolado, impacta em toda a cadeia e tem relação direta com o resultado na xícara.

Quanto mais experiências e trocas de qualidade acontecerem, mais possibilidades virão tanto para o produtor quanto para o cliente final.

É uma reação em cadeia: quanto mais controlados forem os processos durante toda cadeia produtiva, mais valor e reconhecimento comercial, espaço para novos mercados e possibilidades sensoriais, teremos logo ali adiante.

Créditos: Fazenda Santa Margarida, Martins Café (destaque: café fermentado; processo “ultra-dominado”, um processo de fermentação em tanques / café lavado, que traz bons resultados sensoriais e com bastante consistente).

PDG Brasil

Quer ler mais artigos como este? Assine a nossa newsletter!

Compartilhar: