Nem fria, nem quente. Preparando café com água morna
Nos últimos anos, o cold brew se tornou cada vez mais popular entre os bebedores e consumidores de cafés especiais.
A bebida gelada é geralmente feita com água em temperatura ambiente (em torno de 20° C), que elimina a acidez da xícara e realça a doçura e o corpo do café. Isso vai de encontro com a maioria dos métodos “tradicionais” de preparo do café, em que a água geralmente deve ser aquecida a um ponto entre 90°C e 96°C.
Mas que tal preparar com água morna? Para saber se é possível, como experimentar e como é o gosto, conversamos com três baristas. Continue a ler para saber o que disseram.
Você também pode gostar de nosso guia de coquetéis de café refrescantes e criativos.
Fazendo café com água morna
Pedro Foster é barista, consultor e instrutor de torrefação. Ele também fundou o Fuzz Cafés, um microtorrefação no Rio de Janeiro, Brasil, com seu irmão João e o consultor de café Sérgio Kienteca.
Juntos, eles têm experimentado o que chamam de “warm brew” desde 2017. Depois de centenas de testes e anos de experimentação, eles lançaram recentemente um concentrado de café multifiltrado, preparado com água morna.
Mas, para entender por que alguém faria café com água morna, devemos primeiro examinar o processo de extração com mais detalhes.
“O café torrado é um grão estável que carrega muitos sabores e aromas”, diz Pedro. “Para desencadear a extração do grão, precisamos de duas coisas: energia (geralmente calor) e tempo.”
“Em seguida, ajustamos diferentes parâmetros para decidir o que queremos de cada grão, usando algumas variáveis-chave envolvidas no processo: temperatura, tempo e o método de preparo em questão.”
Essencialmente, quanto mais energia você usa, menos tempo levará para extrair os compostos solúveis do sabor do café moído. É por isso que o café de filtro tradicional leva apenas alguns minutos para ser extraído em altas temperaturas (cerca de 90°C), mas a preparação fria pode levar até 24 horas.
Temperatura e sabor
Mari Mesquita, da BikeBrew, é uma barista, especialista em preparo a frio e consultora de qualidade com sede em Brasília, Brasil.
Ela diz que o preparo de café com água morna não deve ser entendido simplesmente em termos de tempo de preparo. Em vez disso, ela destaca o grande número de variáveis envolvidas no processo de preparo do café.
Como o café de filtro é preparado em uma temperatura muito alta, há mais energia disponível e a extração ocorre rapidamente. No entanto, diferentes compostos de sabor são extraídos apenas em determinados pontos de temperatura.
Por exemplo, em temperaturas mais altas, os compostos de sabor tipicamente associados à acidez e outras notas de degustação mais delicadas ou sutis começam a surgir na xícara.
“A bebida gelada é extraída em um longo período de tempo, entre 6 e 24 horas, talvez até mais”, diz Mari.
Porém, por causa da temperatura mais baixa, há menos acidez na xícara final. Em vez disso, o perfil de sabor tende a ser mais doce e suave, com corpo e sensação na boca mais pesados.
O Sérgio, da Fuzz Cafés, diz que devido ao intervalo de temperatura entre o café frio e o típico café de filtro, os resultados são mais variados. Consequentemente, você pode alterar pouco a pouco a temperatura para experimentar.
“Quando trabalhamos com temperaturas médias, podemos escolher o que queremos manter ou tirar da xícara.”
Podemos realmente comparar o preparo frio e quente com o preparo em água morna?
Sabemos que preparar café com água quente, morna ou fria traz resultados muito diferentes. Mas como isso altera o perfil da xícara final?
Segundo Mari, ainda não há uma resposta conclusiva.
“O preparo morno é amplamente entendido nos fóruns de baristas como uma bebida gelada ‘rápida’”, diz ela. “Acho que os dois métodos [preparo frio e quente] agora são muito suscetíveis a interpretações diferentes porque ainda não temos um repertório de degustação forte”.
Ela também observa que é difícil comparar os diferentes métodos. “Qualquer extração deve vir do entendimento de que se trata de algo dinâmico, que cada composto do café é extraído em momentos e temperaturas diferentes”, afirma.
Por exemplo, uma suposição comum é que a bebida fria é menos ácida do que o café de filtro clássico, porque não extrai certos compostos de sabor ácido que surgem apenas a 75 ºC ou mais.
“Porém, há uma diferença muito grande entre a presença química da acidez e a percepção sensorial dela”, conta Mari. Em última análise, o café preparado com água morna é um meio termo entre o preparo a frio e o café de filtro regular; é mais ácido do que o anterior, mas menos do que o último.
Da mesma forma, alterando o tempo de absorção, você pode equilibrar outros parâmetros para aumentar ou diminuir a extração de diferentes compostos de sabor.
Então por que preparar café com água morna?
“Por que não?” responde Mari. “Se não há limite para os sabores que posso extrair para a xícara, vou experimentar.”
O preparo de café com água morna vem ganhando interesse justamente por causa das possibilidades. Também há pouca pesquisa disponível sobre o preparo com água morna. A variação de temperatura permite que os baristas ajustem as características e sabores que experimentam na xícara final – maior ou menor acidez, por exemplo.
“O grande mérito do processo com água morna é o poder de escolha”, diz Sérgio. Abaixando e aumentando a temperatura e expondo os grãos moídos à água por mais ou menos tempo, pode-se destacar sabores específicos.
Mari incentiva baristas, donos de cafeterias e profissionais do café a considerarem o preparo de café com água morna.
“Se for bom e eu fizer algo fantástico com ele, posso apresentar um método de extração diferente que não envolve o tempo e a logística do preparo a frio, por exemplo.”
Ela também diz que, quanto mais pessoas experimentarem, mais acessível ele se tornará. Com o tempo, isso levará mais pessoas a explorá-lo como uma possibilidade e aumentar a qualidade.
“A vantagem do universo do preparo de café com água morna é a possibilidade de aprender com outras bebidas, como a fabricação de cerveja e o preparo a frio”, acrescenta ela.
Como preparar café com água morna em casa
Sergio sugere usar a prensa francesa como ponto de partida. Esta é a sua receita caseira:
De que você vai precisar:
- Café moído grosseiramente (o mesmo tamanho de moagem que você usaria para uma prensa francesa normal)
- Água
Preparo:
- Adicione café e água a uma prensa francesa na proporção de 1:4 (1 g de café para 4 ml de água).
- Leve ao fogo uma panela cheia de água e mantenha em fogo baixo.
- Coloque a prensa francesa na panela. O calor será transferido para o recipiente.
- Tente manter a temperatura da água por volta dos 45ºC.
- Deixe o café fermentar por até quatro horas.
- Mexa regularmente.
- Assim que a infusão estiver concluída, coar o pó usando um filtro de papel. Sérgio não recomenda o uso do êmbolo da prensa francesa e lembra que o filtro de papel proporcionará uma xícara mais limpo.
Dicas para um bom preparo:
- Não tem um termômetro de cozinha? Use sua mão. A água deve estar um pouco mais quente do que a temperatura do seu corpo.
- Prove de vez em quando. Talvez descubra que não precisa das quatro horas completas.
- Para manter a temperatura, você pode usar o fogão ou cobrir a panela com água morna ou fervente.
Como é o sabor?
Como em outros métodos de extração, é difícil definir um perfil sensorial específico para o café feito com água morna, especialmente considerando o grande número de variáveis envolvidas.
Existe uma correlação cientificamente comprovada entre a alta temperatura e a extração de compostos de sabor ácido. Com base nisso, o café feito em água morna deve ser menos ácido do que o café de filtro tradicional, mas mais ácido do que o frio.
Pedro diz: “O perfil final da xícara depende do café que você toma, da torrefação, do tempo, da temperatura e do perfil sensorial. Dependendo de como conduzo minha extração, posso destacar, equilibrar ou ocultar alguns atributos do café que tenho.”
Como teste para este artigo, Mari Mesquita preparou o mesmo café separadamente usando água quente e fria. O tamanho da moagem era o mesmo para ambos, assim como a proporção de 1:5 de café para água (1 g de café para 5 ml de água).
Para o preparo quente, ela colocou o café em “infusão total” usando um termocirculador (sous vide), sem usar filtro para separar a água do café. A solução foi imersa a 50ºC por 45 minutos e, em seguida, filtrada com o filtro V60.
Em contraste, a bebida gelada foi feita com água em temperatura ambiente e colocada na geladeira por oito horas antes de também ser filtrada com um V60.
Ela avaliou o perfil da xícara de ambos os preparos, observando o aroma, sabor, acidez, doçura, corpo e gosto residual.
“O café feito em água morna tinha um aroma muito mais parecido com o café filtrado de forma tradicional”, diz ela. “Senti logo a doçura, incluindo notas de cacau.”
“Com a bebida gelada, senti mais doçura e o final foi mais longo, mas senti notas de malte. A bebida gelada tinha um corpo médio e liso, enquanto que com a água quente, eu tinha um corpo mais leve.”
“Percebi que o final da bebida fria durou mais tempo do que o café feito em água morna. No entanto, a infusão de água morna trouxe mais acidez (embora ainda menos que a água quente), conferindo-lhe uma característica refrescante que enriquece a bebida. É um bom equilíbrio de alguma acidez suave e mais corpo do que um café de filtro regular.”
E agora?
Como ainda não é um conceito convencional, ainda há muito terreno inexplorado para o preparo de café com água morna.
“Ainda precisamos entender, por exemplo, como a temperatura na extração influencia a vida útil da bebida”, diz Pedro.
Mari concorda que a temperatura é o melhor lugar para começar.
“A definição de morno sempre foi subjetiva”, diz ela. “Quente e frio são sensações que você pode identificar mais facilmente, mas o que pode realmente ser considerado morno?”
Ela diz que o próximo passo é os profissionais do café experimentarem uma gama mais ampla de temperaturas de “preparo morno”, enquanto outras partes interessadas do mercado exploram coisas como a vida útil.
Mesmo com tantas perguntas sem respostas, no entanto, os entrevistados veem um grande potencial para esse método.
Pedro acrescenta: “Pode ser base para outros produtos, novas receitas, na fabricação de cerveja, ou como ingrediente para produtos culinários”.
O preparo de café com água morna se encontra em um estágio inicial no setor cafeeiro. Isso significa que há espaço para ser refinado e até mesmo aperfeiçoado.
Mesmo assim, certamente pode ser uma fonte de entusiasmo para o setor de cafés especiais. Representa uma nova possibilidade para perfis de xícaras incomuns e exclusivos, e é outra área onde tanto os baristas caseiros quanto os profissionais do café estão inovando.
Créditos das fotos: Ana Paula Rosas, Marcelo Ribeiro, Fuzz Cafés.
Tradução: Daniela Andrade.
PDG Brasil
Quer ler mais artigos como este? Assine a nossa newsletter!